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cartógrafo de letras, sensações e pássaros

11.04.2010

TEXTO XVIII : UMA DESCRIÇÃO INVENTADA

Não vi quando ela entrou, mas percebi as manchas de sujeira no chão. Seguindo este raciocínio, posso supor que ela se rastejou. Manchas de sangue se misturaram à sujeira e o brilho do piso foi tomado por uma sensação pavorosa. Dizem que ela entrou segurando uma criança, outros disseram ser uma arma. Gosto de pensar que eram flores, porque assim ela seria completa. Certa vez eu lhe disse, você seria tão linda se não... E parava aí. Nunca consegui completar a frase, nem em pensamento. E seus olhos piscavam várias vezes e os olhos verdes continuavam submissos, como se ela concordasse, como se assentisse ao seu triste destino e completasse minha frase terrível. Seria tão linda se não fosse a sujeira, os gestos invertidos, as pernas finas e a sentença de uma vida condenada. Não a chamaria de pobre, eu diria que o paraíso lhe aguardava com vários buquês de flores, um corredor deles, porque seria tão linda se não fosse o cabelo quebradiço, os hematomas e os cortes disfarçados, seria linda se não fosse ela, a própria miséria, os filhos aos montes e pendurados no que restava de suas roupas. Seria linda se partisse logo, se deixasse tudo para trás e traísse os pensamentos angustiantes. Seria linda em um vestido decotado, um biquíni comportado ou uma túnica importada. Seria tudo isso, não fossem as correntes presa ao chão, os limites que a vida impôs e acima de tudo, se sua sorte fosse outra. Seria tão linda, se fosse minha.