Minha foto
cartógrafo de letras, sensações e pássaros

12.14.2013

TEXTO XCVI : NÓS, OS VIAJANTES




por não haver o mar por perto
descubro um marinheiro em mim
e transformo o barco dos meus pés
numa viagem sem rumo
outros viajantes sobem à bordo
e juntos deixamos a cidade
e sua crista de luzes diminutas para trás

nós inclusive deixamos pelo caminho
uma trilha com um rastro cheiroso
e então jogamos cartas e cantamos
canções que só se ouve no rádio
ninguém escreve em diários
ou coisa do tipo

somos turistas redescobrindo
um mapa das amizades, cartografando
as sensações de idas e vindas
viajantes do tempo em algum nível

tenho a impressão de que
a viagem não tem volta
somos todos marinheiros
não desejamos mais estar
dentro de nada, apenas contornando
a superfície inscrita da humanidade



TEXTO XCV : SEU OLHAR LÂNGUIDO ESPIA





do deserto aonde se entregam os lamentos
seu olhar languido espia, retraindo depois como cobra
ou como uma flor rasa que murcha pela tarde

percebo-te distante, de cima de um terraço
(um daqueles com um parapeito, já em ruínas)

atiro de cima um fragmento, um pedaço de uma
pergunta que não se importa com respostas
um buquê de palavras inócuas e frases imaculadas

mas você bem me quer, mal me quer
como a flor das suas palavras cálidas




TEXTO XCIV : NÃO QUE EU ME IMPORTE




não que eu me importe
    com a métrica
ou com o grotesco
  sexo das flores

os dias parecem
tentar imitar

    as insignias
cravadas na carne
das tuas pernas

tem uns dias que
no meu varal um
livro insiste em
não ensinar nada
ao vento




11.30.2013

TEXTO XCIII : MINI CRITICA





eu . hei . de . ser . fe . liz . a . não . ser . que

pela frase gravitam os anseios do escritor
expressos na pontuação grotesca, mas caricatural
que se propõe envolver o leitor numa espiral de tensão onde se
desenrolará a trama, e que, apesar de não apresentar nenhum
personagem assinala a inexorável veia romantica do autor
              [corta para o fim]



TEXTO XCII : PEREMPTORIO




pe-remp-tó-rio
toda vez que leio
vou ao dicionário da
cabeça, a gente sai rindo
da palavra peremptório como
fica rindo da criança que faz xixi
na cama ainda dormindo sem saber
que a palavra esconde o perigo entre
as sílabas do som que é perene aquele que
mata e define o juízo das coisas acima da lei
quem riu da palavra peremptório ou fez xixi na cama
agora espreme os olhos olhando para trás no tempo que
a palavra nem era uma coisa perigosa a palavra volta a ser
pro-fí-cua toda palavra tem que ser profícua senão só serve para fazer
morrer.



TEXTO XCI : A GRAMATICA TODA ESCALDADA




a gramatica toda escaldada

como um instante de gato
a língua meio fugida
assustada com seus gestos

ninguém parou pra ouvir
a vontade do poeta

espera aí, quem é
que disse que eu tinha que
ser
alguma coisa
mesmo?




TEXTO XC : FORM-ATANDO





eu ia começar dizendo e como sempre me atr-
apalhando todo em pens-amento.
como se todo o tempo tivesse que estar que-
rendo dizer a coisa c-
erta dentro de uma lóg
ica morfológica e aind
os adjetivos
em sua melhor forma e-
u às vezes devia era l
argar tudo isso inven-
tar um jeito de sentir
como eu quiser.  quem
foi que inventou de f-
ormatarem o pensa
men
to
todo
em
cara
c
teres?



TEXTO LXXXIX : NO BOJO




eu comecei dizendo adeus
à         todas as coisas
que sabe lá deus quem deu

também
quem é que pode entender
um sorriso no meio do rosto

de quem espera uma vida
toda só para começar?




11.25.2013

TEXTO LXXXVIII : VIAGEM À CAMPO





tenho manias como a de procurar
palavras e descobrir saliências
encrustradas nas coisas ditas

são as pequenas jóias escondidas
sob o deserto escasso da língua
de onde os poetas tiram seu sustento

foi preciso escovar muitas palavras
imitando manoel arqueólogo pássaro
pra entender a beleza das palavras brutas

entendi que o trabalho do poeta
não é lapidar as palavras, nem buscar
extrair delas algo anterior ao seu silêncio

trata-se de imitar os gestos do fotógrafo
que chega aos poucos com seu olhar
domesticado, com a sua maciez técnica

e olhando as coisas como pela primeira
vez através de sua objetiva, ou no caso
do poeta, circundando a palavra assustada

até que tempos depois, em outro silêncio, do estúdio
ou no calor de sua própria casa
se revele
uma flor inteira abrindo na palavra semente




9.28.2013

TEXTO LXXXVII : CINCO ANOS





Quando cheguei
tinha uma fotografia nas mãos
e o coração aberto

Hoje tenho a casa cheia
e uma sensação
de que tudo vai pelos ares




TEXTO LXXXVI : AOS ESCRITORES E POETAS





Não me impressionam
os poetas e escritores
que souberam escrever
escrever rescrever
e escrever

impressiona-me quando
conseguem ao fim
das coisas escritas
nada dizer.




9.26.2013

TEXTO LXXXV : UM RETRATO




eu também olho uma pintura
alcanço com meu olhar triste
o seu olhar tedioso, morto
como se fôssemos feitos de
areia
uma areia fina, guardada há
muito tempo, não como lembrança
como o castigo de dois amantes
separados.




TEXTO LXXXIV : POEMA PARA A DISTANCIA ENTRE NÓS





não sei por quê
volto à banheira
já com o corpo limpo
me atiro de joelhos
esperando seu corpo
me inundar





9.22.2013

TEXTO LXXXIII : O POETA




O poeta fica imóvel
os seus dedos tremem
(o que será que eles escrevem?)

O poeta abre os olhos
respira fundo, e mexe os lábios
sua garganta corroída pelo texto

Fecha os olhos novamente
e recita seu poema sem pausas
conhece seus perigos

O próprio poeta alerta
"Não me interprete
não sofra meu fingimento!"

O poeta relê seu poema
três vezes seguidas
em cada uma uma coloração

Pesaroso, o poeta experimenta
o luto de enterrar suas palavras
relembra as palavras que não usou

O poeta assiste ao funeral dos
sentimentos diante dos olhos
extrai dos versos, as ultimas palavras

como se o poema se desfigurasse
enquanto congela os lábios e se despede
de sua criação,

então fecha o livro e caminha



TEXTO LXXXII : EU FUJO





São Paulo, uhmmm, ahh
quando eu volto é pra te infernizar

São Paulo, tchurururu
São Paulo eu não queria te morar

São Paulo, não vai dar casamento
sempre que eu dou chilique
você insiste em desabar

São Paulo, agora me escute
nas ondas do radio perdidas
Eu te escrevi canção de amor
ficou com cara de despedida






9.17.2013

TEXTO LXXXI : UM DESENCONTRO ESPERADO




há tempos eu volto à sua rua durante minhas caminhadas
e espreito o calor da vizinhança, observando
o andar atrapalhado dos seus moradores antigos
o jeito como se cumprimentam e parecem falar noutra língua.

passo pela sua porta, será que está em casa?
a esta hora deve estar distraída com o almoço
até sinto o cheiro das cebolas e do alho fritando, um cheiro
que sai de todas as casas perto do meio dia, mas não da sua.

será que você está cansada de fazer as mesmas coisas?
ou se acostumou com a ideia de não sentir nada novo.
às vezes pensa em correr sem destino, subir em qualquer ônibus sem volta?
ou é tão romântica a ponto de se imaginar em um barco, sozinha?

passo os dedos entre as grades da sua casa, descascadas e corroídas pelo mau tempo
minhas unhas parecem até que vão cair, mas você se importa?
tem um dia inteiro para ir ao trabalho, encontrar-se com seu namorado
vai te levar ao cinema hoje que é quarta-feira porque é mais barato?

essa multidão passa por mim e me olha como se eu nem existisse
o que será que vêem, será que têm pressa, será que o que têm é só fome?
quando eu tomo coragem de ir embora, percebo que você é que esteve me observando
e o que será que viu? viu que roubei suas cartas? viu que balbuciei algo para sua vizinha?

agora que sei, decido escrever algo sobre a sua conta de luz, o que me vem à mente
qual a minha desculpa para escrever e inventar essas perdas de tempo?
talvez o tempo, para mim, seja uma insuportável penitência e para você, dolorosamente decisivo
e o que nos aproxima talvez seja a incompreensão da velocidade com que ele nos afasta.




9.09.2013

TEXTO LXXX : UM ROMANCE POÊMICO





e eu te seguro nas mãos
as tuas mãos de papel escorrido
você desliza nas entrelinhas
do meu coração picado

autografando todos os acentos
do meu corpo. no meu peito
abre-se um paragrafo inteiro
seu nome dançando em corrente sanguinea

bula de remédio você é mais complicada
que caligrafia de médico decifrar os garranchos
da tua infância em caderninho moleskine
marcador de livro para hora perdida entre nós

perco a respiração você me
anima com sete estrofes, sete letras
diz que nunca vai deixar de soletrar
A-M-O-R-A-P-R-I-M-E-I-R-A-L-E-I-T-U-R-A

seus olhos me desnudam com pena
me borram, me rasgam no tec tec da máquina
dedica um versinho de cantiga de roda recita vai
senão fico triste, morro, toda a tristeza do mundo
escondido em poema adolescente de fichário hello kitty.




TEXTO LXXIX : UM POEMA FEMININO





COISAS DE MULHER


o estomago vazio
a pele à flor da pele
os cabelos colados ao rosto
a sensualidade transborda

as flores na sua vida
um cigarro à espera

seu olhar de ressaca
tem mais anos do que parece.




TEXTO LXXVIII : UMA LEMBRANÇA QUASE FALSA





você invade minha poesia
trança minhas palavras
diz que é visita mas é mentira

você procura as palavras no meu colo
e eu. volta e meia eu escondo as mãos

depois você senta e fica só me olhando
com os pés descalços (eu nunca toquei os seus pés)

eu sinto o seu cheiro, cheiro de especiarias
e flores que nunca conheci o nome

é assim que eu me lembro de você
mesmo que tudo em você seja invenção




8.13.2013

TEXTO LXXVII : UM POEMA VERÍDICO





PAI

você
no vazio da sala
sorrindo ou concentrado?

seu Di Giorgio deitado
um copo de cachaça ao fundo
um maço de Carlton vermelho aberto
a fumaça de um cigarro aceso penetrando a objetiva




8.07.2013

7.25.2013

TEXTO LXXV : FEITO NAU FRÁGIL




feito trem descarrilhado
às vezes minha mãe diz
barco à deriva
barco naufragado
barco sem asas

feito devaneio
fico esperando pelos outros
fico revisitando os caminhos
fico traçando as rotas
fico caminhando em círculos




5.28.2013

TEXTO LXXIV : AS ILHAS




(da ilha não sai.
o corpo transcende)

da ilha deserta
qual se diz nas histórias

a ilha que emerge dos
sulcos do pensamento
feito miragem

os filósofos do rei
pagos para apagar ilhas
                       e mapas
fazem surgir as ilhas nos homens

pouco a pouco
ilhas movidas pelos sonhos
das mais absurdas distancias
unem-se, mas nunca por terra

pequenos pedaços da matéria
desconhecida e amontoada
para fazer chão em si mesmo

as maquinas de achar ilhas não
funcionam em solo, tem que ir atrás
de mares da certeza
(e a única certeza é o perigo dos mares e
o absurdo de se conhecer as ilhas desconhecidas)

os pequenos vestígios de ilhas
são diariamente apagados
as viagens do tempo
quem inventou foram os homens

estas pequenas ilhas
cercadas de desejo
e recobertas da impossibilidade
de se habitar o sem nome

despontam nos mais variados lugares
inalcançáveis às mãos ou aos olhos
às máquinas ou os navios
as ilhas emergem e logo desaparecem
nos mais frágeis encontros

5.12.2013

TEXTO LXXIII : UMA HOMENAGEM



MÃE

na imagem santa, o véu 
que esconde o feminino
adormece uma força
de letra maiúscula

carrega entre as pernas
o pecado por dois
couraça que não cinde
coração que abriga o mundo

querem dar-lhe um dia
comprado com flores


TEXTO LXXII : UMA IMAGEM RECORTADA





eu visito vidas
desprendido de lembranças

fragmentos repentinos
dia a dia
como a visita de um sol

deixo invadidas as almas quietas



5.06.2013

TEXTO LXXI : SETE FIGURAS


I

treze rostos perseguem
um ponto fixo no horizonte
os corpos colados
vontades distantes

II

liberdade
acompanha a rachadura do barco
a madeira contra a água
a corda quase arrebentando

III

tumultada noite
em que a escuridão estrangula
a todo momento
meu olhar perfura o silêncio

IV

um cristo de joelhos
limpa as feridas com os dedos sujos
suas lágrimas tocam a terra bege
milhões ainda vão passar fome

V

desenha o contorno de montanhas sem o cume
a terra sagrada é povoada de fantasmas
três mulheres, entre elas uma grávida
o caminho é cheio de pequenas armadilhas

VI

a matilha desce pela colina congelada
mais adiante a ordem de parada
os cães agitam-se com os vultos
um deles carrega uma lâmina afiada

VII

a vertigem lhe tira do caminho
seus dois filhos foram executados em uma guerra
adormece sentada, ameaçada pela incerteza da noite
seu olhar guarda a história de um povo

TEXTO LXIX E LXX: DOIS POEMAS DE JANTAR



BEIJO


palavra derramada
entre dois pares de olhos negros 
corre o risco 
dos desencontros.




SILÊNCIO


ao encontro do vidro
teu silêncio
me quebra em cacos
como sinfonia.





3.28.2013

TEXTO LXVIII : UMA COMPOSIÇÃO


LENTIDÃO


Cena:

Uma avenida sem fim. É uma marginal larga. Até o horizonte, fileiras de carros nos dois sentidos. O calor de seus motores deforma o ar. As buzinas de fundo são dissonantes. Ré, Lá Sustenido. Sol, Si Bemol. Mi, Lá, Lá, Lá. Os motoristas estão cansados de não se mexer. Presos em uma pressa desesperadora. Seus estômagos lançam pontadas contra o resto do corpo. O rio que divide as pistas é verde. Suculento. Sulfuroso. É Caudaloso. Barulhento. Corre com uma força devoradora. Os carros nunca se mexem. Talvez haja obras, talvez haja um acidente. No rádio só se ouve propaganda. Uma fina garoa paira agora sobre o trânsito. Como uma piada de mal gosto. Os motoristas sentem no corpo a lentidão. Têm taquicardia. Fecham as janelas por causa da garoa. Um calor insuportável. Poucos têm ar condicionado. Ligam os ventiladores. O cheiro de merda impregna os carros...

Trama:

Algum tempo depois vê-se um vulto surgir do horizonte. Os motoristas limpam seus para-brisas embaçados. O vulto ganha forma. Contornos humanos. Sua humanidade é trôpega, quase como se o arrastassem. Desfila sobre a calçada que acompanha a mureta do rio. As cabeças enfileiradas para vê-lo rastejar em pé. Sentem dó. Sentem repulsa. Sua lerdeza provoca. A perna direita é mais curta do que a esquerda. Seus passos retumbam no ouvido dos motoristas. Tum, dum. Tum, dum. Como tímpanos de uma orquestra. Tum, dum. Como se abrissem uma ópera aos poucos. Suspense. Tum, dum. Tum, dum. Os motoristas e os passageiros travam seus dentes de ansiedade enquanto ele não chega. Tum, dum. Aguardando os fagotes e as trompas. Tum, dum. Tum dum. A chuva aperta. Sua roupa encharca e cola no corpo. Revela uma magreza perturbadora. Um corpo doente. Os olhares são apavorados. Não vai cruzar a marginal a tempo. Vai morrer. Retira a blusa. A platéia espanta-se. É uma mulher. Apesar do cabelo curto e dos seios pequenos, seu corpo é de mulher. Tum, dum. Os mamilos são marrons. Duros por causa do frio. Pontudos. Tum, dum. Buzinas. Dramático. O cabelo cola em quase todo o rosto. Quer sufocá-la. A água que escorre é pegajosa. A pele é suja. Tum, dum. Trovões. Corre perigo. Ninguém vai ajudá-la. Esperam o pior. Sempre. Tum-dum, tum-dum. Buzinas em fá sustenido, lá sustenido, dó sustenido, ré sustenido. Aumentado. Outro espanto. Está grávida. Quando passa perto, vê-se a barriga no perfil. O rio movimenta-se. Faz ondas. Quer seu quinhão. Lança jatos contra a mulher. Ela escorrega. Pausa. Apreensão. Levanta-se. Suja. Um ralado. Retoma o caminho. Adagio. Uma garota abre a janela do carro. Estende a mão. Moedas. Passa reto. A mão fica em suspenso. Diz qualquer coisa. Soprano. Continua rastejando. Ninguém reparou: está descalça. Pisa na água suja. Suja de esgoto. De merda...

Desfecho:

A chuva enfraquece. O rio corre veloz. Saciado. Turvo. Como um ensopado. Espuma marrom. Espresso.  Depois de meditar, os carros mais à frente ligam seus motores. Hipótese: vão andar. Dão início a uma sequencia de partidas do motor. Uma cascata de relinchos. Descargas. O rio está cheio de merda. Os carros abrem seus vidros. Brisa gelada. Alívio. Esquecem do trânsito. Absorvem o cheiro da queima de gasolina. A fumaça dos caminhões. O cheiro do gramado molhado. As árvores chacoalhando distantes. As fábricas longe do parque industrial. As queimadas nas favelas. Absorvem tudo o que não cheira à merda. Não têm mais pressa. Poderiam cheirar por horas. Como se nunca tivessem sentido o cheiro de merda. A lentidão percorre seus narizes. Os carros da frente não avançaram. Os motoristas flertam com a pista vazia. A ideia de finalmente andarem é doce. Como um solo de violino. Sonata. Contemplam a distância entre eles e o resto da cidade. Aceleram aos poucos. Seguem em comboio. Nocauteados. Vazios. Perplexos com a própria insignificância. Apaixonados pelo silêncio. Coda...

3.25.2013

TEXTO LXVII : UM CONTO DE GERAÇÕES



PEQUENOS DEUSES



— Quando você nasceu era deste tamanho. Lembro que você quase não chorava, só dormia e quando acordava arregalava uns olhões brilhantes assim. Era o bebê mais quieto que eu já tinha visto, mas então, como era o meu primeiro filho, eu achava que todos os bebês eram assim, pequenininhos, quietinhos e sonolentos como você. Deve ser coisa de pai de primeira viagem, mas da primeira vez eu mal sabia como te segurar, então a enfermeira me mostrou assim, e rapidinho eu já te segurava como se eu soubesse o tempo todo, mas tivesse me dado um branco na hora. Tenho aqui algumas fotos suas, quer ver? Tudo bem. Vou deixar ali na mesinha caso você mude de ideia. Sabe, um pai com uma câmera e um bebê na frente da objetiva é uma coisa que se acontece sozinha. Por exemplo, tem umas fotos ali que eu nem me lembro de ter tirado e que ficaram lindas. E você é lindo agora, como se eu nunca tivesse que fazer nada para te deixar mais bonito. Acho que essas minhas palavras te doem um pouco, dá pra ver nos seus olhos que tem raiva de mim. O que eu posso dizer? Sou culpado. Todos os pais são culpados. É a regra, não é? Você deve saber melhor do que ninguém e nos seus livros de psicologia deve vir uma nota grifada logo no começo, a culpa é sempre dos pais e a bomba sobra para os psicólogos. O que é isso? Estou só brincando, pode rir. Olha, esse senso de humor, você não puxou de mim não, deve ser coisa da sua mãe. Tudo bem, eu paro. Gente jovem é tão séria agora. Antigamente era o contrário, os pais é que eram sérios demais, duros demais, e agora essa criançada toda só quer saber de ser adulto logo, de arrumar emprego, de comprar carro e xingar no trânsito, de correr para isto e aquilo. Essa criançada parece ter medo de ser criança, como se ser criança fosse ruim. Como se fosse menos. Mas eu te digo uma coisa, não tem nada melhor do que ser criança. Claro que você vai concordar, você é psicólogo e tudo o que acontece na infância determina a nossa vida, não é? Quando dá errado a culpa é dos pais e quando dá certo é mérito das crianças. Não é difícil ser psicólogo. E vem você de novo com essa cara amarrada, é disso que eu estou falando. Os psicólogos não podem dar risada? Vou inventar uma psicologia nova que vai ser um sucesso, a psicologia da risada. Não tem coisa melhor que risada, cura qualquer coisa, qualquer erro dos pais e qualquer dorzinha de criança. Vou te dizer a verdade, essa sua carranca tá é me dando agonia, parece que você é feito de pedra menino, acorda! Ah, agora você me diz que eu sou criança, vejo que ser psicólogo não é nada difícil mesmo. Tá, me desculpa, mas achei que você tinha morrido por dentro da cara fechada. É melhor dizer logo porque é que eu vim aqui. Vim porque achei que você precisava de mim. Achei que mesmo sendo psicólogo ia precisar de uma guia, como todo médico precisa de médico e todo dentista precisa de dentista. Deveria haver uma lei que todo psicólogo tem que ter um psicólogo. Tem? Ah, que bom, não estou tão à frente dos psicólogos como eu pensava. Mas então, quer dizer, recebi a notícia como uma pedra na garganta e fiquei engasgado por horas, sem saber o que fazer em seguida. Pelo amor de Deus, como acontece uma coisa dessas, em pleno meio dia bem em frente à catedral? Essa bandidagem não tem mais respeito por Deus. A sorte é aquela bolsa que sua mãe carregava sempre cheia de tralhas grossas e que amorteceu a bala. Não! Imagina se eu ia querer algum mal para a sua mãe! Escuta, você quer me culpar pelo tiro que ela tomou ou o quê? Estou aqui porque uma hora ou outra eu ia ter que vir. Os seus livros de psicologia não falam uma coisa dessas, de conhecer o pai, mesmo depois de velho, de reencontrar as origens e essa caralhada toda? Não sei o que é que ensinam a vocês nessa universidade, a sorte é que é dinheiro do governo, quer dizer, dinheiro de todo mundo, meu, seu, mas é uma putaria mesmo nesse país e o dinheiro não é de ninguém. É dos políticos. Isso, a culpa é tudo dos políticos. Mas como eu lhe dizia, quando você era pequeno, devia ter uns dois anos e estava começando a construir frases. Você não me chamava de pai e acho que depois nunca me chamou, não é? Me chamava como? Zé? O cara que engravidou sua mãe? Tanto faz. Naquela época você me chamava de Tu. Eu sei lá porque raios você inventava de me chamar de Tu, mas era assim e era uma graça então eu não ligava. Naquele tempo sua mãe tinha tanto medo de acontecer qualquer coisa com você. Eu dizia a ela, relaxa, o moleque tem que descobrir o mundo. Ela ficava te cercando, feito um pastor com um monte de ganso. Daí você demorou a aprender a andar, mas depois já quis logo sair correndo. Sua mãe não confiava quando eu ficava a sós com você. Achava que eu ia te esquecer, ia deixar você cair, atravessar a rua sozinho. Era contra qualquer ideia diferente que eu tinha. Sua mãe era um saco para te falar a verdade. Mas então, aconteceu que ela estava certa. Que não podia me deixar sozinho com você, porque eu era irresponsável mesmo. Jamais admiti, mas eu era. Quer dizer, acho que todo homem tem esse sonho de ter um filho criado livre. Pelo menos eu tinha. E não, para ela não podia nunca desgrudar a pestana do moleque... de você. Então eu me afastei, me afastei mais e mais, e ela nem percebeu, porque só olhava para você. E eu fui embora. Ela até deve ter demorado a perceber. Porque os pais são assim. Os pais mais paternos, embora eu nunca tenha me considerado menos ou pior por isso, os pais veem os filhos como pequenos deuses. Nada mais importa além da satisfação dessas miniaturas de deuses que a gente fez. Esses pequenos deuses que estão ainda em treinamento. Então os pais sentem que tem que cuidar deles o tempo todo, que tem que deixar eles sempre bonitos e treinar eles para dizerem coisas bonitas e boas, sem admitir que os pequenos deuses são humanos e erram. E faz o pequeno deus à sua imagem e semelhança e então eles crescem, criam barba, arrumam uma namorada e vivem como deuses grandes, que passam a mandar nos pais. E o que os pais podem fazer? Eles amam incondicionalmente esses deuses, porque saíram de dentro deles e eles têm que amar porque construíram tudo desses deuses, as boas coisas e as ruins. Então os deuses partem para fazer outros pequenos deuses e os pais choram, esperando a volta deles. E como demora! Quando eles voltam de fim de semana, fazem seu prato preferido, cobrem-no de mimos e carícias, porque os pais só querem amar e se sentirem amados. E os deuses, logo partem com seus outros pequenos deuses, deixando os pais sonsos, esperando que um dia os deuses voltem e voltem de novo, entregando o que resta de suas vidas a esses deuses, muitas vezes deuses ingratos. Não estou falando de você, mas você percebe isso na psicologia, não é? Não sei como vocês analisam isso, mas para mim, não tolero esse endeusamento. As crianças são crianças, deixem elas serem crianças, porra! E foi por isso que sua mãe te tirou de mim, filho. Foi por isso que você quis ser adulto logo, que não quis mais me ver, porque eu sou só um velho, um velho que te abandonou, não é? Eu te amo filho, te amei muito e sempre vou te amar, mas não vou ficar aos seus pés, entende? Eu não sou desses, filho, eu te criei para o mundo, não para mim. Me desculpe por tudo, se é que vale alguma coisa. Mas você recebeu as minhas coisas, não é? Os meus presentes, os meus cheques, as minhas cartas, você recebeu minha coleção de carrinhos, não recebeu, filho? Você sentiu o meu abraço, quando eu não pude mais te dar outra coisa, não foi? Você se lembra que eu aparecia nas suas festas de aniversário e você me mostrava para os seus amiguinhos? Dizia, este é o meu pai, dizia que eu era radical, que eu fazia uma porção de coisas que os pais dos outros meninos não faziam. Filho, eu tentei o possível para te ter o mais próximo de mim, sem brigar com a sua mãe. Não, não é culpa dela, talvez também não seja minha culpa, filho. Mas não vou implorar o seu perdão, sabe. Se há algo que eu gostaria de ter te ensinado é isso, que não se pede perdão a quem se ama. O amor equivale a isso, o amor compensa isso, esses deslizes. Errar é humano, filho, amar também. Mas se quiser eu peço, porque não aguento essa sua cara dura. Se quiser eu choro, se quiser eu digo o que quiser. Mas não me dá esse olhar que eu não aguento. Nenhum pai aguenta. Se quiser eu te digo isso então, que você é esse meu pequeno deus e que eu falhei com você. Se você quiser eu vou embora agora. Se quiser eu jogo fora as fotos, se quiser eu assino um papel dizendo que não sou seu pai. Mas não me pede isso, meu filho. O que é que um filho não pede rindo que um pai não faz chorando?

3.17.2013

TEXTO LXVI : UM TRAGO




todo esforço
e diz que vale

desgasta a alma
deforma o corpo
descobre sorrisos
descansa a morte
desenha escolhas




3.08.2013

TEXTO LXV : TRAJETO





subo as escadas
enormes
sem qualquer pretensão de descê-las

tenho uma ideia constante
de que o cansaço e o suor
livram o corpo de suas exigências

e subo com vontade de
ultrapassar meus desejos

faço meu abrigo na sua espera






1.24.2013

TEXTO LXIV : A DOIS




você falava dessas coisas
entardeceres, ou do sol
não lembro
eu me atentava aos pássaros lá no fundo
admirava suas laçadas
um no outro
que eles vez ou outra davam pra se bicar
você nem via
quanto mais falava
de doenças, faxinas, sua avó
mais os pássaros caíam no horizonte
nadando em raios de sol

relava meus dedos em seu braço
você sorria, se arrepiava
e continuava falando
eu sorria, mas inevitavelmente
lembrava dos dois pássaros ali no fundo

faziam redemoinhos, cantarolavam
você voltava atrás procurando
um lindo passado, uns dias de amor

os pássaros se separavam
depois se embaraçavam de novo
também aparecia um terceiro
que não se encaixava com um nem outro

mal toquei no café
os pássaros foram embora
e acompanhei até perdê-los de vista

fiquei alguns segundos com o olhar assim
apoiado nos seus ombros
e às vezes cruzávamos olhares
sem querer
você com seu egoísmo
e eu com o meu