5.10.2018
TEXTO 171 : O SILÊNCIO DOS HOMENS QUE MASTIGAM PREGOS EM PALETÓ
largo do arouche
cidade que arrasta para trás
nunca antes as manhãs viram
homens adultos se amando de
peito nu
a tragédia arquitetada
não dura mais que um semáforo
eu sei disso
porque enquanto
a vida se dissolve
em camadas e mais camadas
há alguém que liga equações
aos fios desencapados
gosto quando fica assim
cheio de flores e
posto reposto
já disse de outra vez
vai acabar quando isso meu deus?
TEXTO 170 : DO QUE APRENDI CULTIVANDO O MEDO
de mim
no mais a mais
que é muito
sobejo
lampião lampejo
escorre gota
faz inseto
feito percevejo
lábia labore
mínimo mimo
a cruz em
credo
sou mais
eu mesmo
TEXTO 169 : PALAVRA PALAVRORIO
ave
não quis a vida que eu tivesse outro nome
o que é certo mesmo além do esquecimento
lugar de penitência
abrindo os buracos com as mãos lisas
uma voz procura prece
menino
ainda não aprendi ser esse quem você quer
desculpa a sinceridade, você é casada?
TEXTO 168 : UM POEMA DELAS TAMBÉM
eu
assim como ela
por não poder usar
o que me convém
por não poder
escolher ser só
eu
tediosamente
dou voltas pela casa
vou a pé e
escolho condicionadores
assisto aos vídeos
fazendo outra coisa
aceito flores para
desfazer o equívoco
TEXTO 167 : EU HOJE QUERIA TE DAR UM BEIJO
eu hoje queria te dar um beijo mas só tenho uma ponta que não queima de jeito nenhum
e como tantas sensações
dissipadas
fico batucando sobre a mesa
sublime manhã automática
vento busca a janela pra respirar
entra luz quando entra
gosto de você mas não consigo
deixar de saber
não vai dar
essa coisa que fica
martelo martelo martelo
quando vou ver
já foi
TEXTO 166 : UM PARAGRAFO
Não que eu não tenha pensado. Nada me vem à cabeça. Não sei o que eu era antes de ouvir você vai ter uma filha. É como se dali em diante já fosse outra pessoa. Quando as palavras colidem com o nosso ouvido, não é um choque no corpo. É uma martelada. Indolor. A gente treme. Esquece. Renasce. Nesses segundos em que a informação é decodificada, ressignificada pelo nosso cérebro, bate e volta, deve dar uns dois segundos ou uma semana. Envelheci na hora. Voltei. Estava de pé. Você vai ter uma filha. Era uma sentença. Um filho, uma filha. Um bebê, uma criança. Eu, pai. Meu pai, avô. Reorganização familiar em sequência. Eu, um pai. Ela, uma mãe. Nós dois, alguma coisa nova. Você precisa pensar, pensei. Soltei todo o ar. Passei a mão no rosto. Preciso pensar, falei. Você vai ser pai. E agora?, perguntei em vão. Não sei, é isso, ela falou. Tem várias coisas que eu devia ter perguntado. Talvez fosse a hora para me comprometer com mais responsabilidades. Dá vontade de fazer planos. Uma filha, uma menina. Sem tempo de me despedir. Fui arrastado pra uma outra vida.
2.19.2018
TEXTO 165 : MAPA URBANO DA DESIGUALDADE
escravizaram
encravaram
na pele grossa
sem escusa
dentes
lanças
passado
à ferro
e forca
na prática
fez-se
profissão
sem nome
lugar
conta
pra pagar
fez
o golpe
o medo
o suor
gente que
nem nasceu
proscrito
prometido
ao grito
e ao rito
quantos
não passaram
nem dos vinte
por menos
que uns quilates
hoje gente
faz história
coloca no prato
a feijoada
e aguardente
chora de rir
tem
gente presa
piada solta
e
mais gente
que a gente
quer a receita
e os orixás
e as batucadas
e os quilombolas
e o hip hop
e os black powers
e as alforrias
e o axé
e a pomba gira
e as favelas
e no cinema
e na música
e nas ruas
e nos noticiários
e nas lojas
e nas faculdades
e o jazz, e o blues
e as batalhas de rima
e no capão, brasilândia
nos bailes funk
e no ano novo
e no carnaval
e nos barracos
e nas varandas
e nas manifestações
e no futebol
e nas salas de aula
e as vaias
e as valas
e os morros
os presídios
e o congresso
e na presidência
e nos hospitais
e nos tribunais
e na justiça
e a justiça?
e as liberdades
que não prescrevem
1.22.2018
TEXTO 164 : UM TEXTO SOBRE O GOLPE
Faço. Refaço. Completamente
alheio ao tempo. Folheio. Ando. Descalço. Faço. Refaço. Procuro no chão.
Sujeiras. Vestígios. Evidências. Encalços. Não me atino aos barulhos. Lá fora.
Não. Lá fora não. Lembro. Deslembro. Finjo que esqueço. O esqueleto que dói.
Passo. Respiro. Nisso já são mais de três. O café na mesa. A mesa no espaço.
Espaço que se dilata e se contrai. Inspiro. Expiro. Existo. Nessa já são mais
de três. A mesa da tarde ali. Posta. Exposta. Reposta. Resposta não. Não tenho
ainda. Migalha. Espalha. Navalha. Navalha na carne? Não. Na carne as dores. Na
carne os ossos. Ouço meia palavra. Palavra na carne. Palavra nua. Crua. Um
cara. Um cara nu. Homem nu? Deus me livre! Lá fora o povo. Lá fora um cara nu.
No olho. Cisco. Arisco. Repito. Apitos. Fanfarra. Algazarra. Põe no mudo. O
mundo todo. Todo mundo. Não. Escarro. Só carros. Tiro sarro. Repito. Espio.
Esguio. No break. Apita. Curto. Não
curto. Circuito. De novo. Eu de novo. Eu hein! Desligo. Amigo. Pra quê? Me
agito. Comigo não. Aqui não. E de novo ela. Sufoca. Transbordo. Sua nuca.
Recordo. A boca. Eu não. Ponho a mesa. Suja. Sujeito ensimesmado. Cabisbaixo.
Embaixo. Põe mais embaixo. Golpe baixo. Gritam o golpe. Manadas a galope.
Manadas de bichos. Esguichos. Ouço guinchos. Ouço os concretos. Pára a cidade.
Eu. Nasce a idade. Eu nessa idade... Na idade das trevas. Na era das bruxas.
Bruxa quem tem bucho. Em nome do pai, do filho. Do bucho. Do empuxo. Em nome da
estaca. Da estafa. Faca de garrafa. Coisa que não qualha. Faca em cima da mesa.
A mesa posta. A mesa exposta. A mesma bosta. Panelas vazias. Quem serão nosostros? Nos outros. Quem o outro. Sou
outro. O mesmo. Mais do mesmo. Medo do mesmo. A esmo. Lesma que engole.
Encolhe. Oscula. Tusso. Refluxo. Resoluto. Absoluto. Soluços. Aqui? Não. Passo um
café. Nessa já são mais de três. De qual mês? Ninguém vai abrir pra vocês.
Vocês animais. Vocês coisa alheia. Vocês iguais. Diferente sou eu. De frente
eu. Enfrento todos. Escuto. Arguto. Impoluto. Boludos! Desta vez não. Nesta casa quem manda. Sou eu.
1.08.2018
TEXTO 163 : UM POEMA SOBRE A DISTANCIA ENTRE AS PALAVRAS
quando escrevia
queria ser gênio
a palavra muda
a gente cai em jargão
mas queria ser a palavra
a palavra muda, mudando
mutada, esquelética
tinha que ser gênio
e a palavra louco
vinha logo atrás
queria sair da sombra
e ninguém nunca
falou nada
da palavra nem
do poeta
escrevi,
que era pra
ninguém pensar
que eu era o fracasso
entre os dois
a palavra fica
1.01.2018
TEXTO 162 : O POETA NASCE MORTO
um poeta
nasce morto
por pouco
ouve o grito
do poeta rouco
não teve casa
não teve filhos
não deixou
palavra
nem ponto
eu toco
o pouco
que ficou
do poeta torto
olha
lá vai ele
pelo deserto
de peito aberto
o poeta é
louco
deixa ele
virar pó
triturar o
líquido
a semente
e ponto
deixa
que as linhas
levem do corpo
o distante
som do seu
pranto
incendiando
a pena
e a obra
pronta
deixa ir
nosso
marginal
herói
poeta bom
é poeta morto
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