Minha foto
cartógrafo de letras, sensações e pássaros

5.27.2012

TEXTO XXXIX : GOTEIRA

Quando brotei na escrita
quis transformar o mundo com as palavras

Depois
tentar transformar as palavras em mundo

Desafio maior
Criar as palavras sem mundo

5.13.2012

TEXTO XXXVIII : A CIDADE

Chego cansado, não é preciso dizer. Sinto uma tontura que me ensurdece há anos. Jogo longe os sapatos e tiro as meias ainda de pé, sinto o piso gelado, uma sujeira incalculável. Acendo um cigarro amassado, estou chapado. Os lábios secos não seguram o filtro, tento, em vão, segurar com os dentes. Dou um trago e a fumaça me dá ânsia. A sala é pequena demais para dois, tenho nojo do apartamento. Já são oito da noite, quebrei a televisão com um martelo há uns meses, a cena parece de crime, nunca o tirei de lá. O telefone toca, nem sei o número de cor, nunca passei para ninguém. Tenho quase trinta anos, vou para a cozinha. Encosto o cotovelo na louça sobre a pia, moscas saem alvoroçadas como se a sujeira fosse demais para elas. Não ligo, bato as cinzas do cigarro em uma lata de atum cheia de larvas e um fungo laranja. O cheiro que vem do ralo não pode ser pior, dou um trago no cigarro, vou vomitar. Corro para a janela, o esôfago aperta, meu estômago revira cinco xícaras de café e saliva de um Trident azul. Seguro em lágrimas e respiro um vento que queima os olhos. Avenida Paulista em dois milhões de cores. É outra coisa de noite, não há nada a se inventar sobre a sombra, sobre a solidão que se sente entre o piscar vermelho de um semáforo de pedestre e seu vermelho definitivo. Compartilho olhares levianamente aliviados com duas garçonetes, uma gerente de banco, um casal tatuado e um velho desdentado que me sorri. A noite desmancha nossa pressa. Dou um suspiro (o máximo de intimidade que terei com o casal de lésbicas de meia idade discutindo sobre uma estúpida mensagem no celular de uma delas que bloqueia meu caminho) quando tento atravessar a Alameda Campinas. Passo de lado e encosto meu pau na bunda da mais gordinha. Ouvi de alguém que aqui tudo cheira a arte, mas não neguei. Se o Kassab não tivesse acabado com os outdoors, ali haveria uma propaganda de apartamentos ou desodorante. São Paulo exala medo. Taxis fazem ronda e encaram meninas de vinte e poucos anos, queria ter meu martelo. Se essa moça andasse na mesma velocidade que eu, teríamos conversa até a próxima esquina? São Paulo cheira a mijo, os restaurantes hoje fecham as onze ou meia noite? É tão fácil seguir alguém, disfarço com meu celular, escrevo jahijahjjajdhdhajjdhadjahdajdha, sorrio como galã, ela já me olhou duas vezes. Mais alguns metros e estaremos sincronizados. São Paulo cheira a poesia ruim. Nunca gostei muito de cinema ou de teatro. Gosto de coisas gratuitas, gosto de assistir às pessoas que vão a esses eventos, dou nomes, conheci uma garota do Itaim que nunca me ligou. Itaim Bibi ou Itaim Paulista? Quem ela pensa que é, top model? Ninguém sai do Trianon de mãos dadas, ninguém sai da estação de metrô, todos os hippies devem vir ao MASP uma vez na vida, Meca, Medina, Jerusalém. Cruzamos olhares bem em frente ao Charme e agora ela aperta o passo. Paro para ver a capa da Sexy que se repete doze vezes, ela aproveita e vira a esquerda, não vi a rua. Continuo pela Paulista e dou uma corrida até a próxima esquina, ela me vê. São Paulo cheira à comida. Arregala os olhos, usa sombra roxa, salto alto, saia até os joelhos e sobe com a pressa. Meu tênis não faz barulho, o cigarro queima rápido com o vento. Já tive conta no Bank Boston, hoje prefiro o Bradesco. A cada esquina tem um caixa rápido, a cada esquina ela olha e não sabe como mantemos nosso ritmo sincronizado. Pela paralela ela não viu, passamos uma base móvel da polícia. Vou encontrá-la na Augusta, dar de cara com ela, chamá-la para comermos alguma coisa no Frevo, tomar umas no Ibotirama, matar a vontade do Pedaço da Pizza, tenho uns setenta reais na carteira e um cartão Platinum. São Paulo não tem cheiro algum, tem pequenos cenários que se movem para uma plateia que aplaude por quinze reais. Não sei em qual esquina nos perdemos de vista, talvez ela não tivesse coragem de pedir meu telefone, ou parou no Subway da Alameda Santos, encontrou o namorado no Starbucks e depois caiu em lágrimas. Atravesso e sento em frente ao Safra com uns três moleques, é a primeira vez deles na Augusta, ouço eles falando da Outs e não sabem pronunciar Sarajevo. Quatro mendigos diferentes me pedem coisas diferentes e eu digo uma coisa inusitada a cada um deles, vai trabalhar, acabei de ser assaltado. Ninguém dá bola, ninguém percebe nada diferente ou novo, São Paulo cheira cocaína, sete carreiras por segundo. Vou acabar minha noite na Consolação, terminar o maço de cigarros sentado sobre o Minhocão à sombra da noite. É de dar medo, mas não tenho. De noite ou de dia, quem vai parar para ver o que aconteceu comigo depois que três moleques desfiguraram minha cara pra comprar cinquenta reais em pedra?