Minha foto
cartógrafo de letras, sensações e pássaros

11.22.2012

TEXTO LXII : PARTE DOIS (AS MARÉS E AS CASAS)





os pingos na areia formavam linhas
como artérias sobrecarregadas
formavam poças escuras
elas logo faziam ruas, alamedas
minhas saídas de emergencia
escorriam em várias direções
um liquido grosso pra encher o espaço
lentamente

me desmontei em blocos
quase um condomínio inteiro
transbordei avenidas, o preço do asfalto
um súbito medo de me perder em vilarejo
milhões de diálogos que cruzam bairros

impossível conter em casas
os prédios também estão lotados
já tomaram minhas ruas, meus semáforos,
já cobriram os rios com seiva preta
uma multidão que não se cala em mim e que escapa
uma enchente de vidas que não pode parar
força das ondas, turbilhão escaldante, as marés, incontrolável


não adianta
carrego a cidade por onde passo



TEXTO LXI : PARTE UM (OS DESERTOS E A MORTE)





disseram que eu andava só
e que não tinha dor como a de deixar pra trás
eu bem andei só, procurando nos meus desertos
um lugar pra fugir do tempo
dar lugar pro coração bater direito
pra doer o que não volta mais

mas não adianta
a sensação de morte não sai
até o chão que eu piso
faz buracos pra se recompor
faz aquilo que eu queria
o próprio tempo é armadilha da vida








11.20.2012

TEXTO LX : NÃO SÃO AS PERGUNTAS





e daí?
se depois de tudo o que eu já disse...

e daí,
se o que eu sinto for dilacerado pelo que dizem que eu devo sentir

e daí,
se o instante continua insosso, nossas palavras se enrolam, nem sei mais o que eu quero

e daí?
se toda a delicadeza que eu colocava na vida for uma coisa gosmenta
uma coisa que talvez a própria vida dê conta de pisotear, esfregando contra o chão
nem que seja sem querer, porque afinal todas as coisas acontecem assim, danos colaterais
e a brutalidade com que consegue ignorar tudo o que eu penso, tudo o que eu sou, ou pelo menos acho que sou, for uma coisa menos tirânica, mais casual
acho perversa
vou além, é doença, nojenta, desgraça, selvagem

e daí
se nem souber meu nome afinal

11.02.2012

TEXTO LIX : POEMA SEM DATA




quis uma caixa de recordações
tentar guardar os instantes pra depois
esperei passar o momento
nem vi

a vida evapora pelas beiradas



TEXTO LVIII : UM POEMA CIRÚRGICO





não basta rastejar para
dentro do tempo
da palavra

tem que rasgar o esqueleto
do verbo, destroncar os
ossinhos do sentido
torcer o momento e
amputar as sensações

desfigurar
nem que aos poucos
a vida




TEXTO LVII : POEMA PARA UM CAIXA ELETRÔNICO






que foi que me deu?

te chacoalhar
até me dar respostas
enfiar-te os dedos
pra entender meus nervos
descarregar porradas
quando não tive tempo
te falar de números
quando queria segredos



10.15.2012

TEXTO LVI : NAS ENGRENAGENS



quando um josé
muito vivido
e trabalhado, mas
longe de aposentar

(ele que tinha
um ar taciturno
poucas vontades
duas filhas
um filho
três netos
e uma neta
dois cachorros
o gato
o casal de periquitos
uma picape ford
uma casa
o puxadinho da filha
um terreno pra construir
um casamento de 25 anos
vontade de vestir roupas femininas
duas irmãs com quem não falava
uma foto do pais sobre a comoda
muitos cabelos
poucos pelos
dentes desgastados
uma coleção de fotos do flamengo
um violão empenado
nojo de camarão
medo de trovões
etc)


decidiu num estalo ou
de uma noite pro dia
tirar férias da vida
tinha umas coisas
pra pensar, disse
e depois foi

...

algum tempo depois
também num estalo
ou de um dia para noite
o josé voltou

(e tinha emagrecido
estava agitado
queria ler livros
e retomar a construção
trabalhar hora extra
trocar de picape
passar gel no cabelo
usar mais camisas claras
brincar mais com os netos
dormir mais de sábado
dar um apartamento pra filha
reatar com as irmãs
visitar o túmulo dos pais
experimentar camarão na moranga
comprar jóias para a esposa
viajar para argentina, méxico
paris, amsterdã, turquia, china
queria adotar outro gato
cruzar os cachorros
uma arara, um pavão)

qual foi sua surpresa
ao descobrir
que nesse tempo
colocaram outro em seu lugar

9.27.2012

TEXTO LV : DE UM GALHO




vi por aí
com olhos ardidos de tico tico
não foi mentira, tem mesmo
burocracia nos olhares das coisas



nem quem é sol pôde
guardar um riacho de canto
(um tico tico riu da coisa
porque não é preciso ter
espírito de pássaro pra saber
que o instante morde e dilacera
como onça faminta)







TEXTO LIV : DA TERRA




passei rápido
só vi depois
de me dar conta
ela tava com
o coração e um filho
na boca de crack
pelada
descalça
comendo terra
debaixo de chuva


pior era domingo

TEXTO LIII : JOÃO DE BARRO





em silêncio de chuva, chão de setembro
uma casinha de joão de barro abriu
naquilo que faltava ser paisagem

bentevi
saiu no susto da coisa sem dizer nada
e a palavra ficou esperando dia piar




TEXTO LII : NA BEIRA DA LAGOA





quem se há de deixar
as vidas voando baixo
perigo de quase pegar o
rasante do momento




8.21.2012

TEXTO LI : UM POEMA SUJO



nem eram três ainda
tiraram a casca da formiga
e toda ela era creme
que escorria no bigode
pra desafiar a mãe
foram brincar de ser menino
de chinelo, no mato, só depois
de lavarem as mãos



TEXTO L : UM POEMA ESCONDIDO





morri em cima lá
da mesa da outra casa
quem viu pegou um pano seco
pra não escorrer na toalha

tinha visita




7.14.2012

TEXTO XLVIII : UM RASCUNHO




ói
escrevi um pássaro
de desenhar vento
onde chuva não pia

depois desabrochou
se manchou no lago
caiu num morno de sol
sumiu num borboleteio


7.13.2012

TEXTO XLVII : NAS RUAS DE SÃO PAULO




são paulo cria teias
de excesso

todos competem
silenciosamente

cada vitória vibra
um medo

TEXTO XLVI : POEMA PARA UM ALBUM DE FOTOGRAFIAS




me afundo em memórias
perco horas tentando calçar velhos passos
tento vestir infâncias gastas

        cada tempo que já não me cabe mais

TEXTO XLV : SOBRE AS COISAS



as coisas todas me perseguem
não há o que não seja na corrida
só fugir

alcanço o mais rápido que posso o lá longe
as coisas ainda me perseguem
como desejos

escondo-me entre as paredes, pedras pintadas, 
mão gelada no ombro
as coisas me farejam, chegam perto e param de respirar

quero que não seja nada, quero que tudo desapareça
e voltar a escrever besteiras para ninguém
mas as coisas me encaram com sua silhueta metálica
para dar choque ou até cortar

não sei se me pegam
mas vez ou outra elas voltam



7.10.2012

TEXTO XLIV : UM HAIKAI MALDITO


Vinha rindo por uma rua
        com seu artefato brilhante (e outras coisas)
sem saber que era contramão

TEXTO XLIII : POEMA SEM CABEÇA

Outro dia eu quis dizer assim
                                                                         a.


mas tive preguiça
           

              por que?

nem sei!
e as coisas todas são bobas


às vezes deito na cama pra descansar o chão



7.02.2012

TEXTO XLII : UM POEMA SEM VIZINHOS




Inventei em mim uma casa de poema
                  volta e meia um vendaval de palavras me atormenta



6.03.2012

TEXTO XL : DA VIDA


Sentadas. Talvez indispostas, alguém poderia pensar.
— Passe-me aquela linha roxa.
Eram duas senhoras acomodadas em seus oitenta anos. 
Enquanto uma delas segurava uma agulha olhando ao infinito de uma parede rachada, a outra lhe estendia a ponta de uma toalha que acabara de fazer. 
Ela ficou assim por um tempo, contemplando o silêncio mordaz da sala de estar, observando pequenos caminhos que iam do teto até o chão, taco recém lustrado. Uma linha que seguia manchas de mãos cobertas de um tempo viscoso, talvez amargo. 
Não havia vitrola, o rádio estava quebrado e a vista embaçava a televisão. Era difícil salivar, a linha não entrava seca pela cabeça da agulha. 
Tinha fome. As pernas tremiam. Pareciam irmãs. Vinham de um mesmo tempo, afogado de jovens, músicas confusas e um mal estar comprimido em seus pequenos corpos. 
— A guerra acabou com tudo o que tinha.
Disparavam verdades, uma a outra, como se a mentira não coubesse em vidas infelizes. Às vezes perguntavam, uma a outra, quantos filhos, quantos anos e quantos casamentos. 
— Meu pai era um bastardo, nunca tive sua sorte.
Moravam na mesma casa, dividiam alguns vestidos. Quando o telefone tocava, suas respirações oscilavam. Cansaço. Euforia. Tristeza.
Seus filhos apareciam, traziam netos e lembranças do exterior. Um deles cantava na noite, às vezes cantarolava desde o carro até a porta da frente. As tardes ficavam mornas. Um par de brincos pesava mais que uma forma de bolo. Sempre havia café para esfriar.
Em uma manhã com pouca luz, uma delas não iria mais acordar e a outra não perceberia. Por isso levaram-na a um asilo, onde não tivesse que passar tanto tempo sozinha, conversando com o retrato da irmã.

5.27.2012

TEXTO XXXIX : GOTEIRA

Quando brotei na escrita
quis transformar o mundo com as palavras

Depois
tentar transformar as palavras em mundo

Desafio maior
Criar as palavras sem mundo

5.13.2012

TEXTO XXXVIII : A CIDADE

Chego cansado, não é preciso dizer. Sinto uma tontura que me ensurdece há anos. Jogo longe os sapatos e tiro as meias ainda de pé, sinto o piso gelado, uma sujeira incalculável. Acendo um cigarro amassado, estou chapado. Os lábios secos não seguram o filtro, tento, em vão, segurar com os dentes. Dou um trago e a fumaça me dá ânsia. A sala é pequena demais para dois, tenho nojo do apartamento. Já são oito da noite, quebrei a televisão com um martelo há uns meses, a cena parece de crime, nunca o tirei de lá. O telefone toca, nem sei o número de cor, nunca passei para ninguém. Tenho quase trinta anos, vou para a cozinha. Encosto o cotovelo na louça sobre a pia, moscas saem alvoroçadas como se a sujeira fosse demais para elas. Não ligo, bato as cinzas do cigarro em uma lata de atum cheia de larvas e um fungo laranja. O cheiro que vem do ralo não pode ser pior, dou um trago no cigarro, vou vomitar. Corro para a janela, o esôfago aperta, meu estômago revira cinco xícaras de café e saliva de um Trident azul. Seguro em lágrimas e respiro um vento que queima os olhos. Avenida Paulista em dois milhões de cores. É outra coisa de noite, não há nada a se inventar sobre a sombra, sobre a solidão que se sente entre o piscar vermelho de um semáforo de pedestre e seu vermelho definitivo. Compartilho olhares levianamente aliviados com duas garçonetes, uma gerente de banco, um casal tatuado e um velho desdentado que me sorri. A noite desmancha nossa pressa. Dou um suspiro (o máximo de intimidade que terei com o casal de lésbicas de meia idade discutindo sobre uma estúpida mensagem no celular de uma delas que bloqueia meu caminho) quando tento atravessar a Alameda Campinas. Passo de lado e encosto meu pau na bunda da mais gordinha. Ouvi de alguém que aqui tudo cheira a arte, mas não neguei. Se o Kassab não tivesse acabado com os outdoors, ali haveria uma propaganda de apartamentos ou desodorante. São Paulo exala medo. Taxis fazem ronda e encaram meninas de vinte e poucos anos, queria ter meu martelo. Se essa moça andasse na mesma velocidade que eu, teríamos conversa até a próxima esquina? São Paulo cheira a mijo, os restaurantes hoje fecham as onze ou meia noite? É tão fácil seguir alguém, disfarço com meu celular, escrevo jahijahjjajdhdhajjdhadjahdajdha, sorrio como galã, ela já me olhou duas vezes. Mais alguns metros e estaremos sincronizados. São Paulo cheira a poesia ruim. Nunca gostei muito de cinema ou de teatro. Gosto de coisas gratuitas, gosto de assistir às pessoas que vão a esses eventos, dou nomes, conheci uma garota do Itaim que nunca me ligou. Itaim Bibi ou Itaim Paulista? Quem ela pensa que é, top model? Ninguém sai do Trianon de mãos dadas, ninguém sai da estação de metrô, todos os hippies devem vir ao MASP uma vez na vida, Meca, Medina, Jerusalém. Cruzamos olhares bem em frente ao Charme e agora ela aperta o passo. Paro para ver a capa da Sexy que se repete doze vezes, ela aproveita e vira a esquerda, não vi a rua. Continuo pela Paulista e dou uma corrida até a próxima esquina, ela me vê. São Paulo cheira à comida. Arregala os olhos, usa sombra roxa, salto alto, saia até os joelhos e sobe com a pressa. Meu tênis não faz barulho, o cigarro queima rápido com o vento. Já tive conta no Bank Boston, hoje prefiro o Bradesco. A cada esquina tem um caixa rápido, a cada esquina ela olha e não sabe como mantemos nosso ritmo sincronizado. Pela paralela ela não viu, passamos uma base móvel da polícia. Vou encontrá-la na Augusta, dar de cara com ela, chamá-la para comermos alguma coisa no Frevo, tomar umas no Ibotirama, matar a vontade do Pedaço da Pizza, tenho uns setenta reais na carteira e um cartão Platinum. São Paulo não tem cheiro algum, tem pequenos cenários que se movem para uma plateia que aplaude por quinze reais. Não sei em qual esquina nos perdemos de vista, talvez ela não tivesse coragem de pedir meu telefone, ou parou no Subway da Alameda Santos, encontrou o namorado no Starbucks e depois caiu em lágrimas. Atravesso e sento em frente ao Safra com uns três moleques, é a primeira vez deles na Augusta, ouço eles falando da Outs e não sabem pronunciar Sarajevo. Quatro mendigos diferentes me pedem coisas diferentes e eu digo uma coisa inusitada a cada um deles, vai trabalhar, acabei de ser assaltado. Ninguém dá bola, ninguém percebe nada diferente ou novo, São Paulo cheira cocaína, sete carreiras por segundo. Vou acabar minha noite na Consolação, terminar o maço de cigarros sentado sobre o Minhocão à sombra da noite. É de dar medo, mas não tenho. De noite ou de dia, quem vai parar para ver o que aconteceu comigo depois que três moleques desfiguraram minha cara pra comprar cinquenta reais em pedra?

4.08.2012

TEXTO XXXVII : UM POEMA MUDO

Vai banhar-se em discos de vinil
e amolecer os calcanhares
Vai ficar em silêncio
até lamber fotografias secas

Vai ferver todas as cartas
destilar anotações voláteis
Vai respirar os livros, vai
engolir as traças

Vai despir-se em lençóis mofados
escrever com as unhas
contar os ossos do pé
vinte e oito anos

Vai contorcer os ouvidos
afogar-se nas vértebras
os pulmões salivando
revirando saudades quentes

O tempo não para de corroer a garganta

1.23.2012

TEXTO XXXVI : PORQUE HOJE É SEGUNDA


Sei que vou fazer
quem vai dizer
não sei
algum dom

Tem que se coçar

Nadar no vidro
explicar montagens
barreiras de vento
sonho bom

Pra dizer verdades
coragem
bobagens
ouvindo Tom.