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cartógrafo de letras, sensações e pássaros

3.28.2013

TEXTO LXVIII : UMA COMPOSIÇÃO


LENTIDÃO


Cena:

Uma avenida sem fim. É uma marginal larga. Até o horizonte, fileiras de carros nos dois sentidos. O calor de seus motores deforma o ar. As buzinas de fundo são dissonantes. Ré, Lá Sustenido. Sol, Si Bemol. Mi, Lá, Lá, Lá. Os motoristas estão cansados de não se mexer. Presos em uma pressa desesperadora. Seus estômagos lançam pontadas contra o resto do corpo. O rio que divide as pistas é verde. Suculento. Sulfuroso. É Caudaloso. Barulhento. Corre com uma força devoradora. Os carros nunca se mexem. Talvez haja obras, talvez haja um acidente. No rádio só se ouve propaganda. Uma fina garoa paira agora sobre o trânsito. Como uma piada de mal gosto. Os motoristas sentem no corpo a lentidão. Têm taquicardia. Fecham as janelas por causa da garoa. Um calor insuportável. Poucos têm ar condicionado. Ligam os ventiladores. O cheiro de merda impregna os carros...

Trama:

Algum tempo depois vê-se um vulto surgir do horizonte. Os motoristas limpam seus para-brisas embaçados. O vulto ganha forma. Contornos humanos. Sua humanidade é trôpega, quase como se o arrastassem. Desfila sobre a calçada que acompanha a mureta do rio. As cabeças enfileiradas para vê-lo rastejar em pé. Sentem dó. Sentem repulsa. Sua lerdeza provoca. A perna direita é mais curta do que a esquerda. Seus passos retumbam no ouvido dos motoristas. Tum, dum. Tum, dum. Como tímpanos de uma orquestra. Tum, dum. Como se abrissem uma ópera aos poucos. Suspense. Tum, dum. Tum, dum. Os motoristas e os passageiros travam seus dentes de ansiedade enquanto ele não chega. Tum, dum. Aguardando os fagotes e as trompas. Tum, dum. Tum dum. A chuva aperta. Sua roupa encharca e cola no corpo. Revela uma magreza perturbadora. Um corpo doente. Os olhares são apavorados. Não vai cruzar a marginal a tempo. Vai morrer. Retira a blusa. A platéia espanta-se. É uma mulher. Apesar do cabelo curto e dos seios pequenos, seu corpo é de mulher. Tum, dum. Os mamilos são marrons. Duros por causa do frio. Pontudos. Tum, dum. Buzinas. Dramático. O cabelo cola em quase todo o rosto. Quer sufocá-la. A água que escorre é pegajosa. A pele é suja. Tum, dum. Trovões. Corre perigo. Ninguém vai ajudá-la. Esperam o pior. Sempre. Tum-dum, tum-dum. Buzinas em fá sustenido, lá sustenido, dó sustenido, ré sustenido. Aumentado. Outro espanto. Está grávida. Quando passa perto, vê-se a barriga no perfil. O rio movimenta-se. Faz ondas. Quer seu quinhão. Lança jatos contra a mulher. Ela escorrega. Pausa. Apreensão. Levanta-se. Suja. Um ralado. Retoma o caminho. Adagio. Uma garota abre a janela do carro. Estende a mão. Moedas. Passa reto. A mão fica em suspenso. Diz qualquer coisa. Soprano. Continua rastejando. Ninguém reparou: está descalça. Pisa na água suja. Suja de esgoto. De merda...

Desfecho:

A chuva enfraquece. O rio corre veloz. Saciado. Turvo. Como um ensopado. Espuma marrom. Espresso.  Depois de meditar, os carros mais à frente ligam seus motores. Hipótese: vão andar. Dão início a uma sequencia de partidas do motor. Uma cascata de relinchos. Descargas. O rio está cheio de merda. Os carros abrem seus vidros. Brisa gelada. Alívio. Esquecem do trânsito. Absorvem o cheiro da queima de gasolina. A fumaça dos caminhões. O cheiro do gramado molhado. As árvores chacoalhando distantes. As fábricas longe do parque industrial. As queimadas nas favelas. Absorvem tudo o que não cheira à merda. Não têm mais pressa. Poderiam cheirar por horas. Como se nunca tivessem sentido o cheiro de merda. A lentidão percorre seus narizes. Os carros da frente não avançaram. Os motoristas flertam com a pista vazia. A ideia de finalmente andarem é doce. Como um solo de violino. Sonata. Contemplam a distância entre eles e o resto da cidade. Aceleram aos poucos. Seguem em comboio. Nocauteados. Vazios. Perplexos com a própria insignificância. Apaixonados pelo silêncio. Coda...

3.25.2013

TEXTO LXVII : UM CONTO DE GERAÇÕES



PEQUENOS DEUSES



— Quando você nasceu era deste tamanho. Lembro que você quase não chorava, só dormia e quando acordava arregalava uns olhões brilhantes assim. Era o bebê mais quieto que eu já tinha visto, mas então, como era o meu primeiro filho, eu achava que todos os bebês eram assim, pequenininhos, quietinhos e sonolentos como você. Deve ser coisa de pai de primeira viagem, mas da primeira vez eu mal sabia como te segurar, então a enfermeira me mostrou assim, e rapidinho eu já te segurava como se eu soubesse o tempo todo, mas tivesse me dado um branco na hora. Tenho aqui algumas fotos suas, quer ver? Tudo bem. Vou deixar ali na mesinha caso você mude de ideia. Sabe, um pai com uma câmera e um bebê na frente da objetiva é uma coisa que se acontece sozinha. Por exemplo, tem umas fotos ali que eu nem me lembro de ter tirado e que ficaram lindas. E você é lindo agora, como se eu nunca tivesse que fazer nada para te deixar mais bonito. Acho que essas minhas palavras te doem um pouco, dá pra ver nos seus olhos que tem raiva de mim. O que eu posso dizer? Sou culpado. Todos os pais são culpados. É a regra, não é? Você deve saber melhor do que ninguém e nos seus livros de psicologia deve vir uma nota grifada logo no começo, a culpa é sempre dos pais e a bomba sobra para os psicólogos. O que é isso? Estou só brincando, pode rir. Olha, esse senso de humor, você não puxou de mim não, deve ser coisa da sua mãe. Tudo bem, eu paro. Gente jovem é tão séria agora. Antigamente era o contrário, os pais é que eram sérios demais, duros demais, e agora essa criançada toda só quer saber de ser adulto logo, de arrumar emprego, de comprar carro e xingar no trânsito, de correr para isto e aquilo. Essa criançada parece ter medo de ser criança, como se ser criança fosse ruim. Como se fosse menos. Mas eu te digo uma coisa, não tem nada melhor do que ser criança. Claro que você vai concordar, você é psicólogo e tudo o que acontece na infância determina a nossa vida, não é? Quando dá errado a culpa é dos pais e quando dá certo é mérito das crianças. Não é difícil ser psicólogo. E vem você de novo com essa cara amarrada, é disso que eu estou falando. Os psicólogos não podem dar risada? Vou inventar uma psicologia nova que vai ser um sucesso, a psicologia da risada. Não tem coisa melhor que risada, cura qualquer coisa, qualquer erro dos pais e qualquer dorzinha de criança. Vou te dizer a verdade, essa sua carranca tá é me dando agonia, parece que você é feito de pedra menino, acorda! Ah, agora você me diz que eu sou criança, vejo que ser psicólogo não é nada difícil mesmo. Tá, me desculpa, mas achei que você tinha morrido por dentro da cara fechada. É melhor dizer logo porque é que eu vim aqui. Vim porque achei que você precisava de mim. Achei que mesmo sendo psicólogo ia precisar de uma guia, como todo médico precisa de médico e todo dentista precisa de dentista. Deveria haver uma lei que todo psicólogo tem que ter um psicólogo. Tem? Ah, que bom, não estou tão à frente dos psicólogos como eu pensava. Mas então, quer dizer, recebi a notícia como uma pedra na garganta e fiquei engasgado por horas, sem saber o que fazer em seguida. Pelo amor de Deus, como acontece uma coisa dessas, em pleno meio dia bem em frente à catedral? Essa bandidagem não tem mais respeito por Deus. A sorte é aquela bolsa que sua mãe carregava sempre cheia de tralhas grossas e que amorteceu a bala. Não! Imagina se eu ia querer algum mal para a sua mãe! Escuta, você quer me culpar pelo tiro que ela tomou ou o quê? Estou aqui porque uma hora ou outra eu ia ter que vir. Os seus livros de psicologia não falam uma coisa dessas, de conhecer o pai, mesmo depois de velho, de reencontrar as origens e essa caralhada toda? Não sei o que é que ensinam a vocês nessa universidade, a sorte é que é dinheiro do governo, quer dizer, dinheiro de todo mundo, meu, seu, mas é uma putaria mesmo nesse país e o dinheiro não é de ninguém. É dos políticos. Isso, a culpa é tudo dos políticos. Mas como eu lhe dizia, quando você era pequeno, devia ter uns dois anos e estava começando a construir frases. Você não me chamava de pai e acho que depois nunca me chamou, não é? Me chamava como? Zé? O cara que engravidou sua mãe? Tanto faz. Naquela época você me chamava de Tu. Eu sei lá porque raios você inventava de me chamar de Tu, mas era assim e era uma graça então eu não ligava. Naquele tempo sua mãe tinha tanto medo de acontecer qualquer coisa com você. Eu dizia a ela, relaxa, o moleque tem que descobrir o mundo. Ela ficava te cercando, feito um pastor com um monte de ganso. Daí você demorou a aprender a andar, mas depois já quis logo sair correndo. Sua mãe não confiava quando eu ficava a sós com você. Achava que eu ia te esquecer, ia deixar você cair, atravessar a rua sozinho. Era contra qualquer ideia diferente que eu tinha. Sua mãe era um saco para te falar a verdade. Mas então, aconteceu que ela estava certa. Que não podia me deixar sozinho com você, porque eu era irresponsável mesmo. Jamais admiti, mas eu era. Quer dizer, acho que todo homem tem esse sonho de ter um filho criado livre. Pelo menos eu tinha. E não, para ela não podia nunca desgrudar a pestana do moleque... de você. Então eu me afastei, me afastei mais e mais, e ela nem percebeu, porque só olhava para você. E eu fui embora. Ela até deve ter demorado a perceber. Porque os pais são assim. Os pais mais paternos, embora eu nunca tenha me considerado menos ou pior por isso, os pais veem os filhos como pequenos deuses. Nada mais importa além da satisfação dessas miniaturas de deuses que a gente fez. Esses pequenos deuses que estão ainda em treinamento. Então os pais sentem que tem que cuidar deles o tempo todo, que tem que deixar eles sempre bonitos e treinar eles para dizerem coisas bonitas e boas, sem admitir que os pequenos deuses são humanos e erram. E faz o pequeno deus à sua imagem e semelhança e então eles crescem, criam barba, arrumam uma namorada e vivem como deuses grandes, que passam a mandar nos pais. E o que os pais podem fazer? Eles amam incondicionalmente esses deuses, porque saíram de dentro deles e eles têm que amar porque construíram tudo desses deuses, as boas coisas e as ruins. Então os deuses partem para fazer outros pequenos deuses e os pais choram, esperando a volta deles. E como demora! Quando eles voltam de fim de semana, fazem seu prato preferido, cobrem-no de mimos e carícias, porque os pais só querem amar e se sentirem amados. E os deuses, logo partem com seus outros pequenos deuses, deixando os pais sonsos, esperando que um dia os deuses voltem e voltem de novo, entregando o que resta de suas vidas a esses deuses, muitas vezes deuses ingratos. Não estou falando de você, mas você percebe isso na psicologia, não é? Não sei como vocês analisam isso, mas para mim, não tolero esse endeusamento. As crianças são crianças, deixem elas serem crianças, porra! E foi por isso que sua mãe te tirou de mim, filho. Foi por isso que você quis ser adulto logo, que não quis mais me ver, porque eu sou só um velho, um velho que te abandonou, não é? Eu te amo filho, te amei muito e sempre vou te amar, mas não vou ficar aos seus pés, entende? Eu não sou desses, filho, eu te criei para o mundo, não para mim. Me desculpe por tudo, se é que vale alguma coisa. Mas você recebeu as minhas coisas, não é? Os meus presentes, os meus cheques, as minhas cartas, você recebeu minha coleção de carrinhos, não recebeu, filho? Você sentiu o meu abraço, quando eu não pude mais te dar outra coisa, não foi? Você se lembra que eu aparecia nas suas festas de aniversário e você me mostrava para os seus amiguinhos? Dizia, este é o meu pai, dizia que eu era radical, que eu fazia uma porção de coisas que os pais dos outros meninos não faziam. Filho, eu tentei o possível para te ter o mais próximo de mim, sem brigar com a sua mãe. Não, não é culpa dela, talvez também não seja minha culpa, filho. Mas não vou implorar o seu perdão, sabe. Se há algo que eu gostaria de ter te ensinado é isso, que não se pede perdão a quem se ama. O amor equivale a isso, o amor compensa isso, esses deslizes. Errar é humano, filho, amar também. Mas se quiser eu peço, porque não aguento essa sua cara dura. Se quiser eu choro, se quiser eu digo o que quiser. Mas não me dá esse olhar que eu não aguento. Nenhum pai aguenta. Se quiser eu te digo isso então, que você é esse meu pequeno deus e que eu falhei com você. Se você quiser eu vou embora agora. Se quiser eu jogo fora as fotos, se quiser eu assino um papel dizendo que não sou seu pai. Mas não me pede isso, meu filho. O que é que um filho não pede rindo que um pai não faz chorando?

3.17.2013

TEXTO LXVI : UM TRAGO




todo esforço
e diz que vale

desgasta a alma
deforma o corpo
descobre sorrisos
descansa a morte
desenha escolhas




3.08.2013

TEXTO LXV : TRAJETO





subo as escadas
enormes
sem qualquer pretensão de descê-las

tenho uma ideia constante
de que o cansaço e o suor
livram o corpo de suas exigências

e subo com vontade de
ultrapassar meus desejos

faço meu abrigo na sua espera