Minha foto
cartógrafo de letras, sensações e pássaros

6.03.2012

TEXTO XL : DA VIDA


Sentadas. Talvez indispostas, alguém poderia pensar.
— Passe-me aquela linha roxa.
Eram duas senhoras acomodadas em seus oitenta anos. 
Enquanto uma delas segurava uma agulha olhando ao infinito de uma parede rachada, a outra lhe estendia a ponta de uma toalha que acabara de fazer. 
Ela ficou assim por um tempo, contemplando o silêncio mordaz da sala de estar, observando pequenos caminhos que iam do teto até o chão, taco recém lustrado. Uma linha que seguia manchas de mãos cobertas de um tempo viscoso, talvez amargo. 
Não havia vitrola, o rádio estava quebrado e a vista embaçava a televisão. Era difícil salivar, a linha não entrava seca pela cabeça da agulha. 
Tinha fome. As pernas tremiam. Pareciam irmãs. Vinham de um mesmo tempo, afogado de jovens, músicas confusas e um mal estar comprimido em seus pequenos corpos. 
— A guerra acabou com tudo o que tinha.
Disparavam verdades, uma a outra, como se a mentira não coubesse em vidas infelizes. Às vezes perguntavam, uma a outra, quantos filhos, quantos anos e quantos casamentos. 
— Meu pai era um bastardo, nunca tive sua sorte.
Moravam na mesma casa, dividiam alguns vestidos. Quando o telefone tocava, suas respirações oscilavam. Cansaço. Euforia. Tristeza.
Seus filhos apareciam, traziam netos e lembranças do exterior. Um deles cantava na noite, às vezes cantarolava desde o carro até a porta da frente. As tardes ficavam mornas. Um par de brincos pesava mais que uma forma de bolo. Sempre havia café para esfriar.
Em uma manhã com pouca luz, uma delas não iria mais acordar e a outra não perceberia. Por isso levaram-na a um asilo, onde não tivesse que passar tanto tempo sozinha, conversando com o retrato da irmã.