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4.07.2015

TEXTO 103 : UMA HISTÓRIA DO RIO



"os rios 
como os bois 
são ronceiros"

- João Cabral de Melo Neto



há histórias sobre riachos
conta-se causos no sertão
dizem que até mesmo os rios
são vivos e tem coração

esta história que eu ouvi
podem achar que não é de nada
quem me contou foi meu pai
mas também pode ter sido inventada

eis a história de uma bóia
que cruzava o rio toda semana
não levava carga, não levava gente
descia quando queria solitariamente

no outro lado desse rio
um capataz cruzava a estrada
atrás de capim e água fresca
para dar de comer a sua boiada

lado a lado percorriam
o que parecia ser o mesmo caminho
a bóia descia com a correnteza
a boiada arrastava-se com lerdeza

a bóia descia o rio
não tinha nome nem endereço
a boiada seguia o homem
e por ele não desmonstrava apreço

de manhã a bóia dormia
de noite seguia acordada
a boiada sem ser dona de si
obedecia a hora da chicocatada

quando o rio se alargava
e de caudalosas águas se enchia
a bóia dançava com liberdade
palavra que boi nenhum conhecia

sobre a tenra superfície d'água
a bóia por dias ficava
alheia ao escuro leito do rio
e os segredos que ele guardava

o rio volta e meia castigava
fazia curvas quando bem queria
lançava a bóia para o outro lado
e a bóia sem governo obedecia

em terra a boiada protestava
contra aquele capataz opressor
o castigo veio a chicotadas
mas os bois ali ficaram, apesar da dor

assim o capataz deu meia volta
entregando aos bois seu destino banal
nenhum deles esboçou reação
talvez esperando um golpe mortal

diante deles no caminho liso
o chão de terra seca aguardava
já não era o chicote vil do homem
mas a sede quem os guiava

enquanto os bois se arrastavam
por entre o mato com dureza
a bóia batendo contra as pedras
era arrastada pela correnteza

mais à frente perdia o embalo
pois a água escasseava
enroscava em toda pedra
e só por acaso soltava

a água perdia sua força
o rio em riacho se transformava
custava até passar pelo mato
que aos poucos lhe abocanhava

presa entre os galhos afiados
já sem nenhuma corredeira
a bóia sem ter outra escolha
esperou uma semana inteira

ali pra baixo uma pilha de bichos
amontoava-se sob uma árvore
eram bois recompostos, mas tristes
de pele tingida de mármore

os bois seguiram viagem
voltaram pela estrada lateral
alheios ao rio, à bóia, às pedras
como se tudo voltasse ao normal

desapareciam no horizonte
e logo nada se via distante
desaprender o que era liberdade
seria o desafio mais sufocante

na paisagem virgem serena
a massa cinzenta destoava
não era planta não era bicho
não se mexia nem atacava

a bóia finda jornada
inerte e longe da água
murchava aos poucos em silencio
e o nada sequer se alterava

nem se notava mais a bóia
sendo engolida pelo matagal
a paisagem se solidificava
e tudo logo voltaria ao normal

o meu pai ainda me disse
vai me levar naquela estrada
pra ver a bóia descendo o rio
enquanto atrás passa a boiada




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