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cartógrafo de letras, sensações e pássaros

7.12.2009

VOLUME III : CONTOS PARTE I

DIAS TÃO FRIOS

Eu nem sinto mais meus pés tocarem o chão gelado. Aqui, tudo parece frio de verdade, tudo tão incolor e frágil. Pra onde foi toda vida ? Pra onde foram os aromas? E o cheiro do café bem cedo, você sem camisa, eu ainda de meia. "Volta pra cama". Coloria meu dia inteiro, meus passos eram como saltos para um horizonte sem limites, sem malícias e de canções inesperadas. Viro a esquina e meus bolsos se enchem de alegria até a hora do jantar, é quando você chega, cansado. Joga tudo no sofá, não quer nem pão, nem água, não quer abraço. Quer um banho quente e um tempo na cama. Só pensando, nem dorme mais, fica horas me olhando sem dizer nada, querendo que eu entenda tudo num só olhar.
Não abre a boca nem pra me dar boa noite, se enrola no edredom, me deixa esperando uma despedida, que nunca vem.
Enquanto o tempo vai passando pra você, me perco na imensidão das voltas do relógio que judia de mim a cada segundo. Cada segundo sem nada pra ocupar meu coração vazio e as horas frágeis.
Dessa vez eu durmo só, dessa vez me entrego de vez a solidão. Nos braços de um outro, ou de um sofá sem vida.
Sem vida, já basta eu e sem vida, vou viver a minha.


Ricardo Rother
Publicado no Recanto das Letras em 17/02/2009



A CONFISSÃO DE LEOPOLDO

Por dezessete anos, Leopoldo traçava o mesmo trajeto todo dia treze de agosto. Tinha nesse dia a obrigação de seguir uma rotina, e a própria obrigação tinha virado rotina. Acordava às seis horas, ou um pouco mais cedo. Acordava pouco antes do nascer do sol e o sol acordava com ele (de acordo com Leopoldo).
Ainda com os olhos embaçados, um pouco pelo sono e mais pela vista cansada, ele ia tateando seu criado-mudo em busca dos óculos, vez ou outra esbarrando num porta-retrato com uma foto de sua esposa. Acordava disposto e ao mesmo tempo cansado, pelas dores musculares e as que repousavam em seu coração. Tinha um coração forte e uns dois infartos lhe trouxeram um novo marca-passo e novas forças para continuar sua vida.
Olhava no espelho e via o reflexo de um homem triste com cabelos grisalhos que insistiam no branco como cor definitiva, mas não se sentia tão velho. Tinha dificuldade em se reconhecer no espelho e evitava falar durante esse momento. Tinha nessa experiência uma sensação estranha de desconhecimento próprio que logo nesta idade não lhe faria muito bem. Saía para a rua.
Leopoldo pegou o ônibus às oito e meia. O vento que vinha pela janela lhe trazia uma sensação de conforto, apesar do frio que sentia nas bochechas enrugadas. Desceu do ônibus no quarto ponto da avenida principal e esperou o semáforo abrir para atravessar a rua tranquilamente. Atravessou com certa lentidão e com a mesma cautela abriu lentamente o portão do cemitério como que pedisse licença para entrar.
"Três para baixo, duas à direita e uma à esquerda", repetia essas coodernadas num ritmo que lembrava um mantra e o fazia sussurrando, talvez para não acordar os outros que ali repousavam. Ele parou frente a um túmulo e pôde perceber um ramo de flores que não reconheceu. Alguém mais havia estado lá e isso não o perturbou. Pelo contrário, o deixou mais tranqüilo ao saber que tinha companhia em seu ato solitário. Ajoelhou-se e com a ponta dos dedos das mãos endurecidos pelo frio, sentia as inscrições na lápide: "Profundo é o poço do passado que alimenta as esperanças de um presente sem futuro" mas dessa vez, talvez a primeira, pôde sentir de verdade a frase. Com certo receio de admitir, invejava os que fazem do seu passado paisagem. Imaginava seu passado fugindo dali, enterrado e indo cada vez mais contra a luz do dia e dele mesmo. Encontrou somente sofrimento ao buscar vida naquele passado enterrado com lápide e tudo mais.
Aliviado e ao mesmo tempo amedrontado com a confissão que lhe viera a cabeça, não se reconheceu mais. Aquele não podia ser Leopoldo, não com aquelas palavras e o sentimento de repúdio à vida que tivera. Sentou-se ao chão e sentiu que ia desmaiar. Não era dia treze, e nem estava em um cemitério. Encontrava-se numa cadeira de balanço de um asilo sem lucidez para discutir consigo mesmo. Abriu a boca e engoliu as pílulas que a enfermeira trouxe. Poderia ser sua sobrinha, sua filha, sua esposa ou qualquer outra pessoa, mas não saberia dizer, não recordava-se de mais nada.
Mais um dia era visto sozinho em seu canto murmurando "Três para baixo, duas à direita e uma à esquerda, três para baixo ...".


Ricardo Rother
Publicado no Recanto das Letras em 16/06/2009


ZÉ NINGUÉM

Quem quer ouvir a história do Zé Ninguém? Bem, como pode-se imaginar, José Carlos Ninguém Soares, brasileiro, nascido em 1960, hoje considerado apenas mais um brasileiro, continua com um sorriso no rosto e a carteira vazia (como muitos de nós).
A história de Zé inicia-se como a de muitos outros, no interior baiano. Era ainda pequeno quando ouvia seu pai, de 30 anos, batendo e xingando sua mãe, que na época tinha 14 anos. Ele então tapava os ouvidos e se enfiava embaixo da cama, gritava bem alto tentando afastar dali os pensamentos ruins e até mesmo a cena que via. Seu primeiro sonho, e ainda lembra, era ser piloto de avião. "Desses que agente vê na tevê fazendo pirueta" lembra Zé, num depoimento a um colega de trabalho.
Quando José não está trabalhando suas 10 horas diárias na portaria do Edifício Residencial Latoya Mars ou então num dos três ônibus que se espreme todos os dias para chegar em casa, ele está, na própria .. a casa! Que nao é a casa própria. José paga 500 reais de aluguel pela sala/quarto com banheiro e cozinha. Todo dia 10 ele desce as escadas para entregar o santo dinheiro ao proprietário do pequeno pedaço de tranquilidade de José. Poderia ser mais tranquilo, não fosse o barulho dos seus filhos brincando. José, brinca "esses meninos são minha alegria mas só me dão tristeza". É com esse jeito sincero e muito espontâneo que José luta todos os dias para manter-se de pé.
Essa é uma história comum, de um personagem comum. É brasileiro, se diz feliz. Não é um grande homem, mas também não se considera um homem baixo. José, vive um dia após o outro com a certeza que num desses dias vai encontrar a janela para sua felicidade. Muito além da janela que com os vidros quebrados também encontra-se emperrada. "Zé! Arruma esse troço hoje que eu já cansei de passar frio de madrugada!".

...

Que há com você, Zé? Não tem mais sorriso, não tem mais espaço pra ninguém nesse abraço? Tudo tão distante e Zé até parece pálido demais.
Ele que era tão moreno e castigado pelo sol, agora sente-se castigado pela vida, pela idade.
Zé, cansou de esperar? Zé, cansou de fingir sua alegria. Vai procurar vida num copo de bebida às 15h da tarde. Zé já esvaziou a poupança e muito antes já tinha o coração vazio. Abandonou os filhos, a família. Sua mulher chora, mais pelo safado covarde que a deixou do que pela ausência do fiel companheiro. As crianças, Zé! Estão falando palavrão, se metendo em cada roubada. Outro dia o menorzinho roubou uma velhinha na rua. A velha revidou e deu-lhe uma bolsada no olho. E o olho do menino, Zé. Está roxo, coitadinho. O menino tem raiva e não sabe de que. Mas você sabe muito bem, Zé. A raiva é de você. É como a raiva que você sente de si mesmo e desconta nas brigas de bar. Não é o dominó, Zé. É você mesmo. Acorda para a vida logo zé, senão ela te passa o pé e não adianta chorar, Zé. Seu bigode não esconde as puxadas de ar que dá de noite pra não escorrer uma lágrima desse olhão vermelho. Arruma essa vida logo, Zé, senão vai passar é frio na rua, sem ter onde cair duro ... e morto.


...

Zé Ninguém é tão José quanto ninguém. Se camuflando na multidão.
José, José Carlos Soares é alguém. Alguém que foi alguém menor, cresceu e virou um cidadão cheio de responsabilidades e não tinha responsabilidade nenhuma. Zé, Zé Ninguém e ninguém o chamava de José. Tinha um destino e desistiu. Desatinou a beber, se enfiou em cada burrada e agora tropeça sem sola no sapato. Ô José! Tão lhe chamando!
José, você tá preso, por não saber o que fazer da sua vida, José. Você está num beco sem saída e com vista pro inferno.
Zé! Você morreu ... e aí? Vai chorar agora, Zé? Vai fazer o que, José?

...

José Carlos Ninguém Soares, brasileiro, 49 anos, porteiro. Ganhou sozinho na loteria, ganhou R$30 milhões e nunca foi buscar o prêmio. Recebeu seu prêmio em casa mesmo. Dois tiros na nuca. Dívida? Jogo? Sabe lá no que andava metido. Esse é só mais um zé ninguém, joga no primeiro buraco que achar.
Adeus, Zé.
Adeus ninguém.

A Deus foi, Zé Ninguém procurar ajuda e o que encontrou foi um sorriso de brasileiro, um uniforme de porteiro.

"Zé! Acorda, dormindo em serviço de novo?"


Ricardo Rother
Publicado no Recanto das Letras em 30/06/2009

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