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cartógrafo de letras, sensações e pássaros

7.12.2009

VOLUME III : CONTOS PARTE II (CONTO AO ACASO)

O conto foi originalmente publicado em 8 capítulos no fim de 2008 . A versão a seguir foi revisada e contém uma introdução do próprio autor.


UM CONTO AO ACASO



INTRODUÇÃO



É provável que um dia os mistérios do universo e outras coisas muito além dos microscópios e telescópios sejam resolvidos e façam parte do senso comum. Talvez o mundo dos acontecimentos não seja mais tão intrigante assim, talvez tudo tenha uma explicação um dia. No dia em que forem descobertos os fios pelos quais o destino nos faz marionete, a vida perca sua essência. Talvez se este dia chegar, muitos vão duvidar, virar céticos por acreditarem ainda nas leis da improbabilidade e do acaso. Este dia será o dia também do fim das frustrações. Quando você sabe o que te espera, sabe o fim, sabe o que vai acontecer, fica difícil se imaginar muito além disso, consequentemente fica difícil a tal da frustração.
Esse sentimento, essa emoção; este comportamento que desempenha papel importante no nosso dia a dia. Que há de tão fascinante no que pode ser e no que há pela frente? Viver de olhos fechados para o futuro, esperando esbarrar em alguma parede para então mudar de caminho? Ou pensar à frente é sempre necessário?


I – ELE


A vida era um fim de festa, trágica, sempre assim pra ele, sozinho e sem amigos. Sem tantos amigos que tinha aos dez anos de idade. Mas era uma escolha própria que ele fazia por tudo parecer o acaso. Sua vida sempre foi ao acaso. Sonhava, mas era tudo pronto, tudo já tinha sido sonhado, tudo já tinha sido feito. Ele tentava escrever uma música. Só uma. Mas tudo já tinha sido feito.
Ele resolveu aventurar-se. Resolveu que precisava dar uma volta um pouco maior que o quarteirão de sua solidão. Ele queria sentir o vento do outro lado da ponte. Conhecer tantos caminhos quanto não pudesse se decidir seria levado pelo vento. Despediu-se do gato preguiçoso e sonolento que era o seu reflexo. Deu um último beijo na mãe que cedo ia para o trabalho, nem tinha mais tempo de contar as histórias do falecido pai. E vivia só pelo filho mesmo. Saiu e olhou pro céu, veio a primeira gota. Era a chuva, chuva mesmo. Chuva que o fazia lembrar da infância, tão prazerosa, sem preocupações. Decidiu virar criança ali mesmo, colocando a língua pra fora e sentindo todos os sabores, sentiu o primeiro amor e o primeiro cachorro.
Encontrou o Sr. Bonifácio e discutiu os mesmos assuntos; futebol, mulher e política. Fora o gato e a mãe, era com quem mais conversava mesmo. Seguiu viagem, pegou o primeiro ônibus para aventura, e sentou-se ao lado de uma mulher gorda. Puxou assunto, viu que a porta abrindo e desceu logo em seguida. Era assim, se tivesse a chance fugia e decidiu sair correndo. Correu até as pernas fraquejarem, e como era boa a sensação de cansar de fugir. Pegou outro ônibus para casa, olhou bem o prédio onde tinha passado toda sua vida. Viu as varandas enfeitadas do natal, pensou no pai. O pai nunca pensou nele, e por isso quis ser grande. Estufou o peito, entrou em casa acariciou o gato, que na mesma posição há dias, retrucou-lhe um miado como quem dissesse "Bem-vindo". E assim sentou-se na cama, sentiu-se bem vindo de sua jornada pelo mundo. Fechou a porta do seu próprio mundo, tirou as meias e já era noite. Pegou o violão, o violão que era do pai e tinha o cheiro dele. Deu quatro acordes, a letra veio em seguida. Cantou sobre a vida cheia de expectativas. Deitou-se, feliz. Compôs, e a música não tinha sido feito ainda. Ele cantou, ele viveu e desejou sonhar tantas noites com os caminhos que podia trilhar. Tinha a consciência limpa e dormiu nos braços do acaso novamente.


II – ELA


Os balões, tão coloridos, tão leves, tão majestosos e cheios de si. Os deuses do céu.
Ela também era assim, ou pelo menos imaginava ser. Sempre foi boa em tudo, campeã de ginástica, medalha de ouro na soletração, boletim cheio de dez. Quem não a queria como filha? Educada, simpática, moça prendada tão responsável. Tinha um olhar manso, cheio de esperanças. A namorada perfeita. Os rapazes faziam fila, mas era moça de família, só depois do casamento. Namorou o Claudio e o Marcelo. Amigos até tempos depois. Seu olhar manso escondia tantas frustrações, tantas que nem cabiam em seu coração enorme.
O pai queria que seguisse sua carreira, medicina, a mãe das carreiras. E tinha o futuro garantido na área, não tinha dúvidas. A mãe, queria vê-la casada com um bom advogado ou alguém que lhe garantisse uma vida confortável e a segurança que tanto esforçava para que tivesse.
Tinha tudo planejado, tudo feito pra ela. E nada que lhe restasse fazer, apenas, viver o sonho. O sonho dos outros. E ela, cheia de si, sabia que podia mais, e de fato, podia muito mais! Podia voar, quando ninguém estava olhando, voava, voava mesmo! Mas logo o grito desesperado do pai pelo bom futuro a trazia de volta. E então, engolia o choro, e sorria. Aquele sorriso lindo.
Não demorou muito para que ela soubesse o que precisava fazer. Precisava sair, precisava voar. Isso! Voar para bem longe. Longe dos desejos materiais, ser feliz lá do alto. Como um balão. Mas balões são conduzidos, são guiados, tem combustível, seguem rotas, não ficam por aí, ao acaso. E agora como haveria de ser um balão? Largado na grama esperando seu condutor. Precisava de um condutor, alguém que lhe desse combustível pra seguir viagem, que a orientasse. Sorriu, e dessa vez de verdade, sorriu como nunca. Iluminou todo o quarto. Uns dizem ter visto o brilho, outros dizem ter ouvido risos. Ela, nunca desmentiu. Era seu sorriso, seu momento. Beijou o pai e a mãe, certos do seu destino. Ela virou de costas, fechou a porta do quarto. Sabia o que tinha e o que queria. E olhou para a janela esperando. Esperando alguém a procura dela, olhou os balões, à espera de um céu limpo. Primavera, na primavera ainda iria voar.


III – UM ENCONTRO


Era cedo, era muito cedo. Era tão cedo que embaçava a vista dos olhos sonolentos ainda. E já de pé, a cidade já estava toda de pé. Foi exatamente às sete e vinte que aconteceu.
Ele ia distraído e olhando para o chão. Não olhava muito à frente, talvez porque não enxergasse um futuro, era focado no presente e só lamentava seu passado. Um passo atrás do outro, um lamento atrás do outro, mas seguia seu caminho, deixando tudo correr como talvez devesse correr, sem correr muitos riscos, claro. Ia ao seu passo.
Ela, sorridente, iluminava seu caminho com um brilho intermitente, tinha olhos somente para o futuro, deixando às vezes escapar seu presente com tantas expectativas que agora tinha. Cumprimentava a todos, e todos lhe retribuíam o gesto. Recebia presentes na segunda-feira, ouvia as fofocas sobre o fim de semana, nem parava mais para ouvir o rádio. Tinha prova de literatura ainda.
Parou alguns segundos antes da porta de entrada para ler uma mensagem no seu celular. Era sem remetente, e tomou dez segundos do seu tempo.
Tempo suficiente para que o garoto distraído e cabisbaixo por natureza abrisse a porta no momento que ela passava. Tempo insuficiente para que ela se desse conta do que estava prestes a acontecer.
E foi inevitável, como muitas coisas na vida. O choque entre os dois, foi mais que inevitável, era como se soubessem que ia acontecer, mas não pudessem evitar. Bem, talvez não. Livros espalhados pelo chão, bilhetinhos carinhosos para ela, claro. Ela pegou os livros rabiscados dele, e alguns desenhos que lhe assustaram um pouco. Ele recolheu duas canetas coloridas, três livros impecáveis e o fichário com cheiro de cereja. "Ai, como sou estabanada, desculpa" ela disse com um sorrisinho que muitos rapazes não esquecem. E se tinha qualidade que não lhe cabia era a falta de destreza com as mãos. Ela, que tinha mãos leves como os pés de uma bailarina nunca havia quebrado um copo sequer. Pouco se sujou enquanto era criança, preferia pintura num quadro à pintura na parede. Coisa que já cabia a ele. E o desleixo lhe caía muito bem, mas nem fazia nada por abafar a idéia de que ele fosse desleixado mesmo.
Enquanto pegavam os livros, não se preocuparam em notar suas silhuetas. Ele, sempre desligado, e nunca se importando com o mundo ao seu redor, ainda fazia questão de mostrar sua ignorância para com uma fêmea da sua espécie, soltando algumas palavras não muito apropriadas.
Os dois lentamente levantaram a cabeça, e como num momento mágico, o cruzar de olhares, um momento que para ele, o tempo parou, não existia nem passado, nem futuro, e nem presente talvez, já que o tempo não passava mais. Ele vislumbrava um rosto angelical, radiante, nunca antes percebido.
Enquanto que para ela, o tempo parecia correr, e com pressa de se livrar do olhar quase faminto do rapaz, fez algum tipo de brincadeira e foi embora.
Deixou o rapaz de queixo caído, agora de cabeça erguida acompanhando os passos dela até a sala de aula. Só foi interrompido pelo sinal que batia, avisando-o que estava atrasado. Mas não ligava de outra advertência. O que importava é que olhava para frente agora e sonhava com o futuro. Não lhe importava a beleza, o olhar, lhe importava olhar para frente. Era novo, e estava empolgado.
Saiu correndo antes que alguém pudesse ver seu sorriso sincero estampando o rosto.


IV – UM DIA DEPOIS (DELA)


Outro dia comum na casa da família Revicci. Primeiro a mãe acordava, e chacoalhava o pai umas três vezes antes de ele resmungar querendo mais um cochilo. "Levanta! Vai se atrasar".
Descia as escadas, acendia a luz do quarto da Fabiana. E como ela odiava que acendessem a luz do quarto. Porque não o abajur? Outra luz qualquer, menos a da lâmpada. Enfim conformava-se que podia ser pior, podiam lhe jogar água na cara. Funcionava, menos para o seu humor.
Todos prontos, arrumados. Ela, disfarçando o sono com sua maquiagem importada. Tomavam seu café da manhã.
Torradas para o pai, frutas para a mãe. Só leite, não muito quente para ela. "Não me sinto muito bem de manhã, acho que é o estômago" sempre dizia isso, mudando as palavras, mas queria dizer que sentia enjôo de agüentar todo dia a mesma falsidade.
Entravam no carro os três, a mãe dirigia. O pai lia o jornal enquanto isso e sempre comentava sobre alguma notícia ruim, que era motivo para não se alegrar no trabalho, fazia-o sempre como tivesse necessidade de alimentar um vício mórbido.
Primeira parada, ela descia, ajeitava sua blusa e o cabelo, se olhava no vidro do carro e sorria. Mantinha o sorriso do momento em que se olhava no carro até o momento em que saísse da escola e entrasse no mesmo.
Tomou cuidado dessa vez para não esbarrar em ninguém novamente, mas o fez sem prestar atenção em ninguém. Ninguém em especial. Procurava alguém especial, mas duvidava que fosse encontrar assim de repente. E pensou na esbarrada do dia anterior. Pensou como pensava na vida, cientificamente, pensou que a esbarrada foi uma coincidência entre dois corpos que tentavam ocupar o mesmo espaço e que, claro, sabia que pela Física, era impossível. Mas seria mesmo? Nascia ali um pensamento mais humano, mais sentimental, que antes era tão esmagado pela inteligência elevada.
Decidiu guardar o pensamento para mais tarde, havia chegado cedo e foi à lanchonete tomar café sem sentir náusea dos próprios pais.
Pediu um lanche natural, e sentou-se para comer. Limpou a boca com o guardanapo, aproveitou para retocar a maquiagem. Abriu seu estojo de maquiagem, não se achava tão linda quantos os outros diziam ser, mas fazia suas caras sensuais ali mesmo no espelhinho. Guardou o espelho, na bolsa. E virou a cabeça pra cima, como fazia sempre para jogar o cabelo para trás. Nem reparou no tênis sujo ao olhar para o chão. O tênis, que havia visto ao recolher uns livros rabiscados no dia anterior.
Para sua surpresa, era ele, até então, desconhecido estabanado. Sorriu como sorria para todos, fingiu umas perguntas bestas e logo se retirou da mesa. Deixando o jovem, desconhecido e pouco importante, como todos os outros que a admiravam.
Ele, sem resposta, sentou-se no lugar antes ocupado por ela. Colocou o fone de volta no ouvido e pensou que sua vida era muito mais que um olhar, e um outro sorriso. Decidiu estudar para a prova da aula seguinte. Ele, que nunca foi de estudar. Mas também, nunca foi de sonhar. Estava cheio de experiências novas. "Sempre há uma primeira vez para tudo" pensava sozinho, como sempre pensou.
E não havia mal algum pensar assim.


V – UM DIA DEPOIS (DELE)


Ele acordava sempre com uma dor de cabeça, e ainda queria saber de onde vinha. Vinha provavelmente dos pensamentos sombrios que sempre tinha, antes e depois de acordar. Mas não se importava com isso, não se importava mais. E hoje não era um dia comum. Era um dia novo e ele tinha sonhado novamente. Já conseguia se imaginar sonhando todos os dias.
Como num dia atípico, resolveu tomar café com a mãe. A mãe sempre ocupada lendo seu jornal, ou assistindo sua televisão, como se não quisesse ficar desocupada, ou sentir-se inútil como se sentia ao dormir. A mãe cumprimentou-o já sabendo que sua resposta seria a mesma de sempre. Naquele dia a mãe deixou o jornal de lado ao ouvir "Bom dia, mãe. Tudo bem?". A mãe espantou-se, ela tomou café mais rápido do que tomava normalmente. Ela sentiu algo lá dentro batendo mais forte e nem sabia o que era, mas sentiu.
Ele tomou o seu leite, frio como sempre, jogou um biscoito para o gato. Este nem com os olhos acompanhou a trajetória do agrado. Continuou na mesma posição que estava há dias, parecia até meditar. Gato meditando? Quem sabe? Não era um dia comum na casa. Prosseguiu sua jornada. Foi a pé para a escola, decidiu respirar um pouco de ar. Que logo foi infestado pelo cigarro que acendia já às sete horas da manhã. Foi ouvindo sua música, como sempre fez, pisando apenas nos espaços brancos da calçada. Cumprimentou a mulher que ficava na quitanda. Ela estranhou, mas logo se distraiu com outra mosca. Foi a pé, mas sentia que voava, e como queria voar. Queria experimentar outras coisas e por que não voar? Lembrou da esbarrada do dia anterior com a garota linda, pensou que talvez pudesse revê-la. Nem que fosse para uma outra esbarrada. Dessa vez sentia-se com mais vontade de conversar. Tinha alguma vontade de conversar e isso já bastava para seu ego. Vasculhou a entrada da escola e não a encontrou. Resolveu procurar na lanchonete, como quem não quisesse nada. Talvez um lanche. Um lanche lhe cairia bem. Pegou uma bala que estava a alguns dias no pote da mesa da sala, para disfarçar o hálito matinal. Encontrou-a sentada na segunda mesa depois da árvore. Ficou parado, esperando que ela olhasse e o reconhecesse. Queria se apresentar e conhecer um pouco, queria mais tirar o peso de ter sido ignorante e arrogante como foi durante toda sua vida. Hoje era um novo dia, era um dia atípico, hoje ele era sociável.
Ela enterrada com a cara na bolsa, fingindo que não o via, logo ergueu a cabeça e sem esboçar muita surpresa lhe sorriu. Cumprimentou-o, puxou assunto. Era seu dia de sorte! Tinha tantos assuntos pra dividir com alguém que já pulavam pela língua a fora.
Ela teve de ir embora, estava atrasada, largou metade de um lanche lá e ele resolveu sentar-se. Mascarando sua decepção. Viu a moça ir em direção à classe. Ela andava graciosamente, nem era para ele, para ela mesma. Ela gostava de sentir-se leve. Ela tinha um ar de bailarina, e hoje, num dia comum, queria afundar no livro de química e de lá tirar uma poção para livrá-la do tédio. Tédio que nem ela sabia de onde vinha.
O tédio está em nós mesmos, a partir do momento que admitimos que ele está presente.
Com ela não foi diferente, logo esqueceu da vida pensando em polígonos, volts e presentes de casamento.



VI – UM SORRISO


Era o quarto dia de suas novas vidas. Suas vidas que agora faziam sentido. Não faziam tanto sentido. Mas tinham certo prazer em viver, e era novidade para ambos.
A segunda aula era de Literatura. Ela adorava Literatura, e todas as outras matérias. Adorava as exatas, as humanas. Uma daquelas pessoas que nasceu para estudar.. Todos nós nascemos, mas ao menos ela gostava. Era difícil dizer do que ele gostava, digamos que tinha certa afeição pela matéria. Única e exclusivamente, ele se identificava com alguns personagens clássicos, coisas do gênero.
O que importa é que ambos gostavam da aula, e estavam lá. Estavam pela aula e nada mais. Ela que sonhava escrever um livro e ele que provavelmente o leria. Ele gostava de ler, devorava livros, mas pouco importavam para ele. Gostava mais do desafio de terminar um livro e colocar na estante, como seu quadro de troféus. E aumentava a cada dia a sua sede, e aumentava cada dia o seu mural de troféus.
Ele queria entender um coração partido, mas nunca tinha amado. Ela queria entender o amor, e só conhecia um coração partido, que era o dela. Eles entraram na sala, sem ter conhecimento da presença um do outro. Sentaram-se por acaso lado a lado. E o acaso andava aprontando boas pegadinhas nos dois, que agora confiavam nele. Sentaram-se e entreolharam-se. Um sorrisinho dela, um olhar sério dele.
Ele sentiu-se desconfortável com a presença dela. Achava que era de propósito. E ela também. Antes que percebessem estavam lendo o mesmo livro, o mesmo capítulo. Provavelmente não estavam lendo a mesma frase, seria pedir demais. Mas entreolharam-se novamente, dessa vez ambos com um riso por estarem mais uma vez numa pegadinha do acaso. E começaram a conversar sobre o livro.
A conversa estendeu-se até o intervalo, eles tinham mais em comum do que o livro e o capítulo. Ela queria ser alguém, ele queria viver algo. Ela queria voar, ele queria viajar.
Ele queria um futuro, ela queria colorir seu livro de fantasias, ele queria alguém para conversar e ela queria alguém pra ser verdadeira.
Não é difícil imaginar o que aconteceria ali há algum tempo depois. Ele começava a sentir um frio na espinha e o suor escorrendo na testa. Ela achou aquilo bonitinho, e sorriu. Não como sorria sempre, sorriu como quem sorria ao futuro. Ele sorriu de volta, sorriu como quem havia encontrado o futuro.
E antes que percebessem tocavam a mão um do outro, riam alto. Ele nem sabia como era mais sua risada. Mas ria mesmo assim, desengonçado. E ela não ligava.
O rádio tocava a música deles, a música para eles, e ninguém ouvia a música. A música que era da Ana para o Felipe, do Roberto para a Beatriz, a música de todos eles. Todos.
"Eu sou a Fabiana" ela ainda não sabia o seu nome e para ela isso importava agora.
"Meu nome é Augusto .. e eu acho que te amo". Ele não sabia o que era o amor, não sabia o que queria dizer as palavras dele, mas disse mesmo assim, sem medo, ele não olhava mais para o chão, olhava nos olhos dela.
Ela não tinha mais palavras, ela que conhecia tantas palavras em inglês, francês e fazia curso de mandarim. Ela procurava nos dicionários da sua mente. Ela procurava alguma citação, ela procurava um poema. Ela não sabia o que dizer. E sem palavras o beijou. Pôde sentir seu corpo saindo do chão.
E estava voando, novamente. Não estava sozinha, estava com ele e ainda sim podia voar. Ela sorriu, ele também.
Ela seria livre agora, voaria como os balões que almejava. Tinha ao seu lado o seu guia, tinha todo o combustível, ele era livre para o mundo, pouco lhe importava a geometria, a cinemática e os micro-organismos. Eles voariam para longe, do mundo, de tudo. A carreira na Medicina a aguardava ainda, e ele, tinha seus livros para ler.
Eles voltaram para suas casas, deitaram-se na cama, tentando ouvir a música deles, que nem era deles ainda. Despediram-se das estrelas e sonharam com o que o acaso e a segunda-feira lhes guardavam.
Ele sonhou com as cerejeiras e ela com os poemas. Eles não tinham pressa e nem o acaso.
Abraçou o travesseiro esperando algum arco-íris em seu quarto.


VII – UMA LÁGRIMA


A idéia de dois corpos ocuparem o mesmo espaço ainda parecia absurda para ela. Ia contra as leis da Física que ela tanto estudava. Mas talvez houvesse algo a mais. Algo maior, algo que somente a força que o acaso lhe impunha poderia ser responsável.
Ele, já não acreditava nesse destino, o acaso era um mero companheiro. Custava a acreditar no tal destino desde que seu pai faleceu. Não tinha afeto pelo pai, e nem ele o mesmo. E por mais que lhe faltasse esse amor, esse contato, cresceu sentindo falta de algo, todas as suas músicas jogadas fora falavam disso. Não necessariamente do pai, mas da falta que lhe fazia a sua figura.
Sua mãe demorou para que começasse a namorar de novo. Ele nunca aprovou nenhum dos candidatos ao posto do pai. A adolescência talvez o confundisse, mas sua mãe cansou de insistir e conformou-se com a solidão.
Fabiana colocava o travesseiro sobre a cabeça para não ouvir os gritos dos pais enquanto discutiam desde pequena. Adormecia assim, sufocada pela mentira que viveria no dia seguinte vendo os dois fingindo ser um casal feliz. Sonhava mais um dia com os balões, com as estrelas, sonhava agora com a sua iminente partida.
O alarme tocava nas duas casas, era mais uma segunda-feira. Ela não parecia se importar em levantar tão cedo e nem ele, que já estava acordado antes mesmo do relógio bater às seis horas. Estava inquieto, pensando no que o acaso teria reservado para ele.
Ambos seguiam sua rotina, não dando nenhum tipo de sinal do que estavam esperando.
Ela nem disfarçava o sorriso e o sorriso já lhe era natural, não dava para notar a diferença.
Ele acariciou o gato. O gato não parecia estar lá, estava inerte, tinha emagrecido. Seu olhar continuava fixo e ninguém parecia notar. Às vezes miava, em um tom desconhecido entre os gatos e continuava lá.
Ela não tinha gato, nem cachorro, tinha um peixe que nem era dela na verdade. O peixe era da mãe, e chamava-se Tião, curiosamente, o nome do primeiro namorado da mãe. O pai desconfiava sempre da mãe e o adultério era tema freqüente das discussões entre eles. Fabiana nunca gostou do Tião e acreditava que o pai é quem tinha um caso com a secretária.
Terminados os rituais matinais das casas, os dois dirigiam-se à escola como sempre faziam. Ele, empolgado. Ela, receosa. "Um estranho, beijei um estranho que diz que me ama e se ele for um louco? Psicopata?!" ela não parava de pensar no último encontro entre eles.
Naquela manhã, talvez por estar com a cabeça em outro lugar, e o lugar era à sua frente como gostava de pensar, o rapaz não percebeu as sombras que se aproximavam de trás dele. Ela também não fazia idéia do que ocorreria e nem tinha como saber, nem sabia nada sobre ele. Sabia que se chamava Augusto, que era estranho e amava ela, ou pensava que amava.
Momentos antes de chegar ao quarteirão da escola, Augusto foi abordado por quatro rapazes mais velhos, espancado e violentado.
Não chegou a entrar na escola nesse dia, ficou sozinho, como sempre fazia quando isso ocorria. Ficou sentado num banco, e foi tomado novamente pelos pensamentos nocivos e sombrios. Era frio de novo, Não queria falar com ninguém.
Ela estranhou sua ausência, fofocou com as amigas, comeu seu lanche de salmão e acertou todos os exercícios de trigonometria. Resolveu não aumentar suas expectativas com o rapaz. Foi saindo da escola com sua pose como sempre fez e notou uma silhueta conhecida lá longe. Era ele! Resolveu ir até lá. Ele estava rancoroso, quieto, e imóvel, como o gato. Ela falava com ele, ele não ouvia nada, ele era uma rocha. Ela enfureceu-se, não perdeu a pose e foi embora como sempre fez. E não pensou mais nele, como nunca fez.
Contou ao pai sobre o dia na escola, e sorridente despediu-se dele como sempre fazia, como a bonequinha que ele tanto amava.
Deitou na cama, pensou no Augusto, pensou melhor. Pensou nos logaritmos que lhe confundiam a cabeça e logo não quis mais voar.
Acomodou-se na cama, beijou o sapo de pelúcia e quis acordar num dia ensolarado, que iluminasse mais que o sorriso falso que dominava o quarto.


VIII – FINAL


A madrugada e o silêncio que ela trazia, alimentava toda a crueldade que agora habitava o corpo dele. Não tinha forças para repelir o ódio que sentia de si mesmo. Sentia-se fraco, sujo, insignificante. Nem queria mais olhar para o chão, não queria mais abrir os olhos. Encarava a foto do pai amassada no fundo da gaveta, a gaveta era cheia de outras dores guardadas. Queria ter alguma carta de amor, algum desenho alegre. Queria ter alguma motivação e depois desistir só de raiva, queria rasgar o mundo e depois jogar fora. Queria abandonar algum sonho que tinha na vida. Queria destruir algo importante para ele, algo importante para alguém, queria fazer parte de algo e depois abandonar. Algo que fizesse sentir que sua existência não importava e nunca tinha importado. Não pensava em se matar, não via prazer na morte. Morreria e encontraria o pai. A dor que vivia valia mais a pena que o tal encontro.
Pensou no acaso, ele tinha confiado no acaso e ele o deixou na mão. Não viu recompensa e agora estava de volta à estaca zero. Havia progredido tanto, conheceu o mundo, conheceu um sorriso, se surpreendeu e agora não havia mais para onde ir a não ser para sua cama. Olhava o violão com um pouco de saudade, não sabia de quem, mas tinha saudade. Encarou mais uma vez o gato, o gato sorriu e pulou pela janela. Sabe-se lá onde foi parar o gato. Ele nem se importou, apagou o abajur, olhou para a estante de livros e conformou-se com a insignificante existência que tinha, xingou Deus e decidiu deixar um bigode crescer.
Ela também não dormiu bem aquela noite. Seus pais não brigavam já fazia um tempo e ela até sentiu falta, pelo menos assim conseguiria dormir. Mas naquela madrugada ela não sabia o que fazer. Ela não pensava no Augusto, ou no seu olhar. Ela pensava que seu coração jamais se sentiria vivo algum dia e queria estar errada. Via seus sonhos de liberdade indo embora e o tormento de seguir a vida que os pais queriam para ela, voltava a inquietar as batidas do seu coração que sempre eram poucas. Queria dormir, nem precisava sonhar. Queria dormir e anestesiar a dor que sentia, nem que acordasse pior. Queria suas horas longe de tudo e de todos. Ouviu o pai xingando a mãe de “puta” enquanto chorava e apanhava tentando esconder a infelicidade da vida.
Fabiana só teve tempo de virar a cabeça no travesseiro de forma que seu rosto ficasse exatamente pela metade afundado no travesseiro, que era como ela gostava. Não cobriu o ouvido, decidiu conformar-se com a vida que teria. Pensou ter ouvido um gato na sua janela, mas desistiu. O calmante com a garrafa de vinho já fazia efeito e ela só precisou fazer uma pequena pressão nos olhos para que eles se fechassem e a levasse distante. Tão distante quanto não pudesse voltar nunca mais. Era sua fuga, um coma, triste e indeterminado.










“Frustração é uma emoção que ocorre nas situações onde algo obstrui de alcançar um objetivo pessoal. Quanto mais importante for o objetivo, maior será a frustração. É comparável à raiva.”






Ricardo Rother

não publicado


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